Ensemble Gaoshan Liushui
Grupo dedicado às musicas da China.
O Ensemble Gaoshan Liushui é o projeto mais marcante em minha trajetória artística, no sentido em que abriu novos horizontes e trouxe muitas realizações.
Fundado em 2012, sua formação e concepção aconteceu gradualmente. Amigos próximos não se conformavam com o fato de eu gastar anos no estudo das tradições musicais chinesas (cultura e história) sem concretizá-lo num trabalho artístico. Eles insistiam em dizer que conhecimento parado, sem destinatário, estava fadado ao esquecimento, ou pior, à indiferença.
Assim, fui me convencendo da importância em dar forma a um projeto artístico que combinasse tudo que eu já tinha absorvido em meu trabalho de pesquisa de campo na comunidade taiwanesa do Templo Tzong Kwan, e também em leituras solitárias e aquisições de materiais bibliográficos, muitos dos quais, adquiridos em viagens ao exterior.
De início, minhas hesitações eram ligadas ao acanhamento, pois, sendo eu de origem ítalo-brasileira não me julgava apto, ou com voz para falar no lugar dos chineses que tanto mais viviam a cultura nativa do que eu. Como espectador, mantinha-me fechado em meu universo — minha auto-exigência era sem medida.
A certa altura, de tanto adentrar as comunidades chinesas, e nelas conviver diariamente, percebi que a minha identidade mudava ano a ano, incorporando traços e trejeitos culturais, de um modo em que eu não era mais capaz de discernir fronteiras ou diferenças entre mim e os outros.
Delinear diferenças culturais entre chineses e brasileiros figurava-se como algo estranho e artificial. E logo me percebi outro em processo de ser, um tanto misto, entre uma identificação de raizes italianas e chinesas. E eis o mais paradoxal: acostumados como estamos com a lógica linear de tempo cronológico, o sentido de fixar raízes passava a acontecer no plano simbólico e afetivo, não necessariamente determinado pelo crivo de nossas heranças e modos de ser familiares.
Contraria isso a tese freudiana do individuo como elo de uma cadeia? Sem dúvida! Mas a subjetividade moderna, é justo dizer, forma-se a partir de outras instâncias culturais, não raro, com mais peso definidor do que a transmissão através do núcleo primário. Muito por isso compreendi que o significado de "fixar raízes" tem a ver com cultivo de nossa liberdade identitária, num solo que pode, sim, ser outro, e acima de tudo, constantemente cultivado.
Então, desse modo difícil de ser posto em palavras, minhas raizes encontram-se emaranhadas entre heranças italianas e cultivos chineses. A terra (italiana) é molhada e semeada pelo arado chinês. Isso mudou tudo! Mudou a minha percepção quanto a forma dos relacionamentos que sustentamos ao longo de uma vida.
A FUNDAÇÃO E HISTÓRIA DO ENSEMBLE GAOSHAN LIUSHUI
O Ensemble Gaoshan Liushui é uma dessa raízes. Ele foi estabelecido em abril de 2012, nas salas de minha antiga e única escola de música, a "Quatro por Quatro", no bairro das Perdizes. Entretanto fora dois anos antes, nas dependências desse imóvel comercial de dois andares, que três amigos deram início a um protótipo do grupo, o Tao Kong Chuan — André Mestre, Rodrigo Bussad e eu, formávamos um trio de erhu, flauta e violão; e fora idealizado para tocar em apresentações de Kung Fu. Essencialmente amador! Em vista das dificuldades inicias ligadas à residência dos músicos entre São Paulo e Sorocaba (e exterior) computando duas apresentações em campeonatos, e outra mais na 'Festa de Vesak' do Templo Tzong Kwan em 2011, o grupo se extinguiu.
Em 2012, outro impulso foi dado, e o projeto reelaborado. Dessa vez com cinco músicos — André Ribeiro (zhongruan e guqin), Alfredo Rezende (erhu), Cíntia Harumi (dizi), Nelson Lin (yangqin) e Rodrigo Bussad (dizi). Esta formação passou pelo processo de entrosamento e conquista de repertório inicial.
Em 2013 o grupo ganhou uma nova integrante — a cantora, soprano barroca, Marília Vargas. Porém, em 2014 Rodrigo Bussad se ausentou temporariamente do grupo por ocasião de seu mestrado em musica na Universidade de Miami, e do seu retorno em 2014/15 o grupo passou por conflitos internos, no que foi dispensado do grupo logo no segundo semestre de 2015. O Ensemble passava assim por uma grande renovação, que iria revitalizá-lo ao início de 2016.
Nos primeiros anos do Ensemble (2012—14) o grupo voltou-se à execução de repertório nativo chinês dentro da comunidade budista taiwanesa. Suas atividades iniciais eram ligadas às festividades budistas de acordo com o calendário anual, invariavelmente, 'Ano Novo Chinês', 'Aniversário de Nascimento, Nirvana e Morte de Buda' (o Vesak) e a 'Cerimônia dos Antepassados', com então seis instrumentistas.
Em 2015 o grupo se profissionalizou com cinco músicos, e um repertório já consolidade de peças instrumentais clássicas e canções populares. Contudo, foi em 2016, com a apresentação "Vozes da Revolução" no SESC Vila Mariana, e um programa de peças dos anos que precederam a Fundação da República da China (1912), pelo estadista republicano Sun Yat-sen (1866—1925), que o grupo conquistou sua identidade e se fez conhecido na cena cultural.
Ainda em 2016, o ensemble fez uma breve turnê no Maranhão por ocasião do V Festival de Música Barroca de Alcântara.
Essa apresentação foi o ponto da virada nos trabalhos do Ensemble, que logo adotou um estilo, uma voz artística e príncipios teóricos e estéticos definidos. O impacto dessa apresentação ecoou ao longo dos anos, servindo de modelo para o projeto posterior "Paisagens da China", concebido e produzido por Nelson Lin, a partir do lançamento da campanha de financiamento coletivo no Catarse para a gravação de seu primeiro CD de mesmo nome. A campanha foi um sucesso — em maio de 2017 entrávamos no Estúdio Monteverdi do músico, pianista e improvisador, André Mehmari, para gravação.
No segundo semestre de 2016, estabeleceu-se uma série de parcerias de promoção da campanha que vieram a se integrar à sua rede de apoio, sendo as principais: Shàoshèng Centro de Cultura Oriental 紹聖弘文會館 (dirigido por Gil Rodrigues, atualmente, cofundador da Associação Guqin Brasil), Templo Tzong Kwan, então a nossa sede e base de ensaios, e Pula Muralha escola online de mandarim (dirigida por Sisi Liao). Desde então, o grupo se organiza em torno dessas instituições.
Com a gravação do CD 'Paisagens da China' os concertos passaram a orbitar em torno da ideia de uma recepção brasileira às tradições musicais da China, com enfoque na elaboração de arranjos enquanto meio de tradução cultural. Longe de replicar estilos chineses entre brasileiros, os trabalhos musicais do grupo apoiam-se na elaboração dinâmica do repertório chinês, considerando a recriação de seus elementos formais e estilísticos. Com isso o arranjo torna-se um produto musical misto permeado culturas distintas, voltado ao público em geral — e ao mesmo tempo estabelecendo uma ponte cultural entre brasileiros e as comunidades chinesas.
O Ensemble hoje está em processo de imersão no repertório que preenchia a cena de Xangai nos 1930, difundindo por Li Jinhui (1891-1967), o pai da moderna música popular chinesa. Precursor de um estilo musical que combinava as influências europeias e norte-americanas com a música tradicional chinesa, Li foi idealizador e líder da trupe "Lua Brilhante de Música e Dança”, frequentemente se apresentando em cabarés, e cujo lema — “Nós levantamos a bandeira de uma música para as pessoas comuns, tal como a lua brilhante no céu, brilhando por todo o país para que todas as pessoas desfrutem” — refletia a retórica do “Novo Movimento Cultural”, criado e estabelecido na Universidade de Pequim entre os anos de 1910 e 1920, e cuja tônica recaía no desgosto pela tradição imperial chinesa, e na adoção de valores e referências ocidentais para a música. Seu trabalho foi visionário serve de referência até hoje.
No ensejo de compreender essa transformação da sensibilidade chinesa, e que posteriomente mudaria o cenário artístico global da música chinesa atual, o Ensemble Gaoshan Liushui tem elaborado arranjos baseado no repertório dessa época, que em breve subirá aos palcos brasileiros.