guará yawara & çariama
dando nomes aos qins
Os nomes evocam sentimentos. Quando um objeto é nomeado de acordo com a nossa percepção, o afeto despertado no corpo adquire a particularidade de se tornar coeso com o objeto nomeado. Assim, quando damos um nome a um objeto que move nossos afetos de maneira mais ou menos inequívoca, estamos dotando de expressão vivente a relação que fazemos com este. Equivale a dizer que uma vez dotado de um nome próprio asseguramos uma relação entre o corpo que sente e expressa em extensão ao objeto que sedia e canaliza nosso afeto particular, nossa estima, nossa vontade de comunicar algo, frequentemente, indizível. Visto desse modo, nomear um qin, especialmente aquele de uso cotidiano, é como dotar de um espírito próprio a relação que mantemos com este. Se no caso de um objeto musical, como o qin, a relação torna-se mais potente—pois que nutrimos em ato uma forma de continuidade de uma expressão sentimental que ganha vida por meio de um instrumento musical e os sons que nele despertamos e relacionamos à nossa existência—assim o é porque diariamente atualizamos essa relação expressiva na forma de um despertar conjunto dos afetos atrelados a um modo de existência particular com o qual nos identificamos. Em poucas palavras, enquanto músicos, nomear um instrumento musical implica estimular uma relação artística de identificação, tanto com a produção simbólica quanto com a forma como sustentamos a nossa identidade no dia-a-dia. Vai daí, o nome pôr em relevo uma imagem através da construção sonora (a prática musical) que vem a se tornar uma potência de expressão.
Foi neste sentido que nomeei meus dois qins, recentemente adquiridos sob encomenda de uma luthieria de Yangzhou, como uma forma de construir o meu entorno sonoro cotidiano a partir da localidade em que mantenho residência; o cerrado brasiliense. É aqui que os meus qins se sustentam em relação à produção simbólica. Por isso fiz de ambos os qins uma força viva do cerrado: o lobo-guará e o pássaro siriema.
É fato que na antiguidade chinesa havia o costume de nomear os qins de acordo com a sorte que se queria atrair para si, sobretudo no que dizia respeito aos antigos letrados, cujas posses permitiam comprar (e colecionar) qins históricos. No entanto, o costume difundiu-se fora da elite palaciana, e muitos músicos, exímios tocadores, nomeavam seus qins segundo alguma qualidade expressiva que lhes era intrínseca. É caso, por exemplo, do qin da dinastia Song (sec 10), que pertenceu a 梅曰強 (1929-2003) Mei Yueqiang, 11° mestre da Escola Guangling, e foi a leilão em 2011. Seu nome: 鐵鶴舞 "O Grou de Ferro Dançante." Ou ainda famoso qin do Príncipe Lu, dinastia Ming, que se chama "Paz Essencial".
Dar nomes aos qins, no contexto das crenças chinesas, era um ato mágico, que se sustentava no poder das palavras para além da mera comunicação das ideias. A crença na vocalização dos ideogramas, e o especial interesse dedicado à nomeação dos objetos, é tão antiga quanto a história da China—e até hoje vemos nas comemorações de ano novo chinês as pessoas renovarem os dizeres auspiciosos afixados nos portões e portas das casas e prédios. Para além do enigma da magia que os nomes evocam, no caso dos instrumentos musicais, o ato é também uma forma eficiente de recordar os propósitos primeiros de uma prática musical cotidiana. Assim, o músico, mantendo em mente uma espécie de imagem central (evocada pelo nome do instrumento), parte em busca da expressão qualitativa e progressiva do som no instrumento ao qual devota o seu fazer.
Considerando essa e outras questões simbólicas, pensando no Brasil e na região em que moro, como que para dotá-los de alma brasileira, batizei os dois modelos que tenho, um Luoxia e um Zhongni, respectivamente, o primeiro de Guara Yawara Aña (alma de lobo-guará) e o segundo de Itá-Ueraua Çariama (canto da siriema de cristal). Algo originário nessa nomeação veio por outra língua: o nheengatu, antigamente conhecida como 'língua franca'. Essa nomeação por outra língua brotou em mim como uma forma de enraizar o qin no Brasil, começando pelo cerrado brasiliense.
Ambos os qins estão vinculados à fauna desse bioma enorme. Cada um encarna, ao menos em ideia, uma qualidade desse bioma. O primeiro possui as manchas de fogo do lobo guará, um animal solitário, de hábitos noturnos, que resiste à seca prolongada, apesar das agressões ao meio ambiente promovidas pelo agronegócio. O segundo expressa a força brilhosa e penetrante desse pássaro mítico de canto trovejante e explosivo, empoleirado nas estacas das fazendas escaldando sob o sol brasiliense. Dar nomes de animais a esse dois qins evoca uma alma de animal, e que não deixa de impactar na produção sonora de ambos instrumentos. Tenho estudado intensivamente a sonoridade do modelo Luoxia (Guará Yawara Aña), branda, amadeirada, e penetrante, para construir uma nova paisagem sonora à minha volta. E já foram duas peças que compus neste instrumento. Por outro lado, ainda tenho buscado compreender o canto da Sierema no Zhongni.
Embora ambos instrumentos tenham saído, sob encomenda, de uma luthieria de Yangzhou, a diferença entre eles é bastante significativa. Dá a entender que cada um foi feito por pessoas diferentes. O trabalho em madeira do Luoxia é primoroso, as cordas estão a uma altura muito confortável em relação ao tampo, o toque é responsivo e a dinâmica progressiva quando aplicamos mais energia. No entanto, o Zhongni apresenta uma construção extremamente delicada. Suas cordas distam menos de um centímetro do tampo, e em certos ponto chega a cinco e quatro milímetros; o que torna um toque enérgico mais complicado. Pois a tendência é a corda ricochetear com violência no tampo distorcendo a sonoridade natural da corda solta. Por essa razão esse qin tem uma responsividade muito alta, que requer um controle técnico muito mais refinado para evitar distorções.
Algo inédito nessa nomeação foi a paridade dos nomes em nheengatu com os nomes em chinês. Ao apresentar ambos instrumentos à comunidade da New York Qin Society, em um dos encontros regulares, minha supervisora, Peiyou Chang, ofereceu-me a tradução de um deles: "Maned-Wolf Soul" (versão inglesa para esse animal da família dos canídeos) como sendo 鬃狼之魂 zōng lángzhī hún, ou 狼之魂 lángzhī hún, ou simplesmente 狼魂 láng hún. Para o modelo Zhongni (Ita-Ueraua Çariama), Peiyou chegou a sugerir o nome 鶴鳴九皋 Hèmíng jiu gāo. Na verdade, trata-se do nome de uma das peças do repertório tradicional, que em versão inglesa chama-se:"A Crane Calling in the Deep Marsh;" em português: "O grou chama do fundo do pântano." Uma vez que não há pântanos no cerrado, fico um pouco receoso de adotar esse nome em mandarim. Entretanto, a associação do chinês ao nheengatu torna esse ato ainda mais interessante, pelo que vem a ocupar um registro cultral duplo. Quem sabe no futuro distante haja mais interesse neste tipo de vinculação trans-cultural.
Para além da pesquisa sonora que preciso empreender em ambos os qins, resta ainda gravar os nomes embaixo dos qins, e se possível, um poema que explore a poética de ambos. A história desses qins, portanto, começa agora.
The City of Brasília (the Brazilian capital), where I live today, is in the middle of Cerrado. One of the larger biome of South America. Land of Brazilian rivers spring. From time to time, I'm used to travelling around the Federal District to places like Perinópolis and Alto Paraíso, especially the latter where are the Chapada dos Veadeiros National Park in the Brazilian Central Plateau, one of the larger areas of permanent forest preservation and legal reserves.
Here is a beautiful short video:
Because of that, I named my recent qin acquisitions — a Luo Xia and a Zhong Ni model — using the old native Brazilian language (lingua franca) in the early times (when Portuguese people arrived) the "nheengatu." To Luo Xia, I named "Guara Yawara Aña," meaning "Maned Wolf Soul," an endangered red wolf specie. To Zhong Ni, I called "Sapucaí Itá-Ueraua Çariama," meaning the "Cry of the Crystal Siriema (a native Brazilian bird with a strong and high pitch cry).
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