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Etnografia da Música budista

Escrever sobre a prática musical a partir de um olhar de dentro da comunidade budista, na qual frequento desde 2001, foi um dos maiores desafios de minha vida como pesquisador.





Desafios no trabalho de campo


Meu trabalho de pesquisa se deu em face de uma vivência acumulada por um longo período de tempo (2001-2018) — enquanto observador e membro atuante da Associação Budista América do Sul Tzong Kwan — cuja contribuição pessoal voltada à realização das cerimônias budistas, no que tange à execução musical, me permitiu adentrar o seu contexto específico, estabelecer laços, e experienciar as condutas e significados em torno das cerimônias. Compreendendo a música cerimonial em vista da confluência identitária, pretendo traçar uma etnografia de duas cerimônias — ‘Cerimônia Ordinária’ e ‘Cerimônia dos Antepassados’ — e examinar os fatores de tensão que permeiam a diáspora taiwanesa e suas implicações na reelaboração constante de seus propósitos diretores.


Procurei observar o espírito que anima e sustenta essa comunidade budista taiwanesa do ponto de vista da confluência entre as identidades nos contexto específico (entre chineses e brasileiros) da cerimônia, e que expôe um nó de significados e representações, indicando o porquê da música nas cerimônias budistas, suas estruturas melódicas complexas, seus contrapontos, suas harmonias sobrepostas, não serem vistas como música e sim como ‘sons’ produzidos para difundir o Dharma (em chinês: “Fayin 法音”).


Essa peculiaridade levou-me a examinar o conjunto de símbolos e significados entrosados numa prática cotidiana, de certo modo, reguladora da vida social em comunidade. É digno de nota ter em mente os pressupostos culturais tradicionais chineses, para além do budismo, que permeiam a teia de relações monásticas de um modo bastante fluído integrando brasileiros aos serviços essenciais, desde o trabalho voluntário em atividades como manutenção, cozinha, limpeza, até os ofícios religiosos. Via de regra, os códigos culturais falam mais alto do que as instruções normativas e regras de convivência, atuando como ponto de contato social de interação e troca de traços culturais.


Examinar essa comunidade, simultâneamente, ao passo que participo ativamente dela exigiu de mim uma atitude cultivada de distânciamento crítico para poder construir um olhar analítico que não fosse sobredeterminado pelos ligações afetivas, e pelo meu próprio credo em relação à prática budista. De fato, para mim, pesquisar essa comunidade exigiu-me adotar uma dinâmica de leitura e análise etnográfica que referisse os dados aos conceitos e estruturas de produção de saber antropológicas.


Trata-se de uma pesquisa em andamento, cujos resultados parciais segue abaixo em ensaio.


observação: o texto vem apoiado pela leitura de ‘How Music is Man’ de John Blacking, ‘The Anthropology of Music’ de Alan Merrian e ‘A interpretação das culturas’ de Clifford Geertz. Assumindo a proposta de Geertz por uma “descrição densa”, a seguir, iniciamos pela descrição da grande caixa de ressonância e seus símbolos – o Templo – para assim alcançar as condutas e suas negociações.


Musica e não (os sons do dharma)



O Templo Caminho do Meio


1./ No bairro da Vila Mariana, ao número 498 da Rua Rio Grande, um pórtico com uma pesada tábua de madeira suspensa convida a entrar nos dias de cerimônia aos domingos; traz a inscrição: «中觀寺» [Zhōng Guān Sì] ‘Templo Tzon Kwan’; em português: ‘Templo Caminho do Meio’. A inscrição estende-se às colunas do pórtico contíguas a uma loja de ferragensi de um lado, e a uma residência de outro, instaladas no calçamento. Quando em janeiro de 2001 cruzei o pórtico pela primeira vez perguntei a Mestra Yin Tsuii o que significavam aquelas inscrições laterais, e dela a resposta foi sucinta: “quer dizer boa sorte!”. No entanto, quinze anos depois, estudado o mandarim, relendo os caracteresiii, encontro essas frases: «觀法緣起即俗即真利人天» & «中道實相非有非空證般若», que numa tradução aproximada, significam: “Contemplando o Dharma do Surgimento Condicionado, percebe-se tanto a realidade convencional quanto a realidade última para benefício dos seres humanos e devas (de todos)” & “O Caminho do Meio desvela a verdadeira realidade; nem eternalismo, nem niilismo; assim propicia a consumação de Sabedoria Prajña.”


2./ Do pórtico segue-se ladeando o edifício central; uma arquitetura tradicional chinesa em planta retangular de três patamares, onde no alto situa-se o Salão de Buda, ao térreo o Salão de Convivência e no subsolo o Salão do Refeitório, este constituído de copa, cozinha, banheiros e dormitórios. Nestes três ambientes encontramos ritmos e condutas características. Se no primeiro, o Salão de Buda, os praticantes budistas encontram o “Refúgio na Joia Tríplice”iv, e lá exercem a função de ‘corpos ressoantes’ ao participarem ativamente das cerimônias semanais, cantando os sutras, mantras e cânticos – as mulheres do lado esquerdo, os homens do lado direito –, no Salão de Convivência, desambientados dos ritos de ordenação dos corposv, voltam-se à convivência informal. O Salão de Convivência representa uma espécie de ambiente intermediário, ambiente de passagem, onde se misturam os praticantes nas variadas atividades sociais e religiosas que ali acontecem com regularidade, sendo estas as Palestras do Dharma, o curso de Introdução ao Budismo, a troca das vestimentas cerimoniaisvi, a Cerimônia em Homenagem aos Falecidos (junto ao pequeno altar dedicado ao Bodhisattva Ksitigarbhavii dos mortos, e o chá da tarde à mesa com a monja. Ainda neste ambiente, permeado de símbolos da cultura budista taiwanesa, encontram-se nas laterais do salão as estantes da biblioteca (contendo os volumes do Tripitakaviii, e uma ampla bibliografia budista em português); no hall de entrada a caixa de doações com Buda Shakyamuniix num trono de lótusx no topo, e um conjunto de sala de estar ao lado esquerdo da porta principal, onde uma das poltronas é permanentemente ocupada pela placa representativa do ‘Grande Mestre’. Do Salão de Convivência segue-se ao Refeitório no subsolo.


3./ Em janeiro de 2017 realizei uma entrevista com o Mestre Zhihanxi sobre a estrutura dos cânticos na Cerimônia dos Antepassadosxii, em vista de uma chamada de artigos em etnomusicologia para uma revista científica da UFRJ. Falávamos da resistência dos praticantes chineses quanto as partes cantadas em português durante a cerimônia ordinária, originalmente em mandarim clássico, quando ele me disse: “posso explicar melhor a natureza deste problema falando dos trabalhos na cozinha”. Segundo ele, o trabalho do voluntariado chinês na cozinha era o exemplo mais concreto que lhe vinha à mente - ali onde oito equipes de voluntários alternavam semanalmente nos dias de domingo na preparação do almoço comunitário, oferecido logo após o término da cerimônia. A preocupação com uma alimentação mais saudável, contendo menos frituras e mais cozidos, em vista da idade avançada da maioria dos praticantes chineses, o fez em meados de 2016 introduzir uma equipe de apoio formada por brasileiros. No cardápio passaram a figurar pratos típicos brasileiros, tais como, macarrão ao molho de tomate, arroz e feijão, sopas e caldos de legumes, e feijoada vegetariana. A reação dos chineses foi fulminante. Esvaziaram o templo nas semanas seguintes. A baixa frequência de praticantes nas cerimônias aos domingos causou desconforto entre os voluntários chineses, que logo exigiram a restauração dos trabalhos de planejamento na cozinha de acordo com os costumes: os mesmos grupos (chineses), o mesmo cardápio (chinês).


Longe de retratar apenas um atrito étnico entre chineses e brasileiros, um dissabor em vista dos hábitos alimentares, a questão em torno do cardápio constituía-se em torno da interpretação dos significados e crenças endereçados à prática de geração de méritos, em chinês, «功德» gongdé xiii. Membros mais antigos da comunidade, chineses em geral, excessivamente preocupados, externaram a preocupação com continuidade da vida no templo, uma vez que a geração de méritos pessoais havia sido bruscamente obstruída pela introdução de um novo cardápio, cujo efeito sobre a comunidade não fora benéfico, e sim plenamente disruptivo. As queixas orbitavam sobre a boa saúde dos corpos, expressa na longevidade de alguns membros mais antigos, como sinal de prosperidade em razão dos trabalhos fundamentais realizados na cozinha no provimento da subsistência mais básica do Sanghaxiv: a alimentação. A oferta de alimento ao Sangha, de bom grado por parte do voluntariado chinês, constituia a espinha dorsal na manutenção dos corpos na prática budista.


Uma vez embaralhados os significados atribuídos ao esforço individual na preparação dos alimentos, apesar do cardápio à brasileira se justificar pelos cuidados com a saúde dos praticantes a longo prazo (controle do diabetes e níveis de colesterol), o temor da desagregação social tomou forma de desamparo na interpretação dos voluntários chineses. Passaram-se algumas semanas agitadas; e a despeito dos inúmeros conselhos e palestras proferidas sobre a geração de méritos na prática budista da generosidade e compaixão, donde resultava méritos ainda mais insuperáveis, o abade se viu forçado a restaurar as equipes originais na cozinha, sem mais conflitos a frente. Para compreender a raiz deste conflito institucional recuamos aos ideais encarnados na construção de um templo budista, como este localizado em São Paulo.


4./ {Constrói-se um templo} Um templo budista taiwanês é construído em torno do Salão do Buda «佛寺» Fósì; usualmente com dinheiro de doações dos membros de uma comunidadexv imigrante em processo de agregação, cuja demanda mais presente reside na necessidade de se ter um lugar central, onde por meio de exercícios e práticas espirituais possam os praticantes desta religião se beneficiar de recursos para instituir uma vida comum e meritória. Concluída a construção do salão principal, erguida a imagem de Buda sob um altar, uma cerimônia é oficiada pelo corpo monástico, para assim consagrar aquela comunidade em torno de um bem comum: a necessidade premente de criar méritosxvi, visando uma vida satisfatória em concordância com os preceitos budistas.


Chineses budistas, como os que se encontram em comunidade religiosa em São Paulo, nos Templos Tzong Kwan e Templo Zu Laixvii, entendem na prática budista uma forma de agenciamento da vida devotada à felicidade na busca pela sabedoria, cuja qualidade vincula-se diretamente aos méritos gerados pela prática religiosa formal, compreendidos em linguagem leiga como sementes das boas açõesxviii, ou mais especificamente, enquanto virtude cármica adquirida através de ações morais e rituais; e ainda, potencializadas pela especial relação entre leigos e monges. Em suma, gerar méritos traduz-se nos vínculos sociais com o corpo monástico, de modo a criar causas e condições favoráveis ao caminho espiritual, que tanto irá refletir na vida presente, na forma de pequenas retribuições, como propiciará boas condições às existências futuras.xix


Neste sentido, o templo enquanto local de consagração destes ideais funciona como um espaço específico de atuação social, por meio de atividades voluntárias devotadas à manutenção e subsistência da comunidade, cujos propósitos devem ser renovados de tempos em tempos (rememorados), sob a forma de um conjunto regular de práticas e ritosxx. Deste viés, as cerimônias instauram e restauram noções e visões fundamentais à comunidade, cujas ressonâncias nos praticantes prosseguem nos relatos de experiências, nas consequências reflexivas, nas explicações dos caminhos e descaminhos na vida.


É neste cenário de antecipações de ordem social (o que se espera de um lugar), e ideais de conduta (amplamente restituídos e trabalhados em atividades constelares) que a música, ou os “Sons do Dharma” surgem como um dos fatores de consolidação dos princípios fundantes de uma comunidade budista. Por essa razão, a música cerimonial irá impactar na fundação de um templo; dar-se na forma de um selo constitutivo à consagração dos ideais com que se busca instaurar no 'local mundano'xxi uma emanação formal da Joia Tríplice (Buda, Dharma e Sangha). Desta forma, a música externada pelas vozes reunidas é vista como parte fundamental, porquanto se possa levar a efeito as cerimônias em torno da ideia de participação efetiva, ou isto: de integração da comunidade leiga aos membros da comunidade monástica. Mais do que ritualidade está em jogo um sentido social do exercício espiritual, que é também sonoro; ressoa nos indivíduos praticantes, atores da comunidade, na forma de um 'poder de animação' do espaçoxxii, delegado pela comunidade monástica. Por essa razão é preciso situar a música, os sons (e os significados da prática do canto), em meio ao agenciamento identitário dos indivíduos em constante processo de atualização.


A restauração a caminho do meio


5./ Por meio da imagem do conflito quanto ao cardápio aos domingos quero estender a questão à cerimônia ordinária que antecede o almoço, onde também convivem brasileiros e chineses. Em 2009, quando Mestre Pu Hsien (fundador do Templo Tzong Kwan) esteve em São Paulo para apresentar a comunidade o seu sucessor, o jovem monge Zhihan, uma velha intenção quanto aos propósitos da fundação do templo foi reativada. Em palestra pública ele expressou o seu desejo original de criar raízes brasileiras. Assim, dali em diante parte da cerimônia ordinária deveria ser oficiada também em portuguêsxxiii; ou seja, na liturgia oficial passava a coexistir ambos os idiomas, português e mandarim.


Desta retomada de valores e propósitos fundantes, iniciou-se o trabalho de adaptação das melodias chinesas ao português; uma prática histórica comum no âmbito das aculturações religiosas de músicas nativas, designada na antiguidade por ‘contrafactumxxiv. Uma vez que eu era dos poucos voluntários com conhecimento específico em música, me ofereci a realizar este trabalho. Desde de 2001 eu já vinha coletando e transcrevendo os cânticos principais (motivado por interesse etnomusicológico quanto as cerimônias), e que, reaplicados, serviram de material melódico de base para arranjos corais nos coros budistas que organizei e conduzi entre 2001 e 2008. Contudo, em vista dessa nova demanda, ao trabalho de coleta se impunha uma problemática complexa, pois a substituição de textos, do mandarim ao português, não fazia mais do que multiplicar uma série de entraves ainda maiores de ordem social, religiosa e musical, a começar pela duração na recitação dos textos; – quando traduzidos quadruplicavamxxv em extensão, bem como as inadequações rítmicas que desordenavam a prosódia natural nas melodias chinesas.


A iniciativa relançada pelo fundador redundou em desagravos generalizados; entre chineses, pela dificuldade com o idioma português e a duração longa na recitação dos textos, entre brasileiros, pela quebra de conexão com os cânticos originais em mandarim, apreciados essencialmente por sua mística, estética e coloridosxxvi orientais, que permitem o cuidado no processo de construção da alteridade brasileira. Um difícil problema se colocava diante dos trabalhos de adaptação dos cânticos: não somente os significados foram embaralhados e dissociados, como a razão estética de ligação com a aura sonora das cerimônias sofria perturbações para além da possibilidade de restauração dos costumes. Uma nova razão, ou restituição de uma moral originária, que fora determinante na promulgação dos ideais em torno da construção deste Templo, se impunha agora com toda força. Criar raízes brasileiras a partir da prática litúrgica, mais do que necessário, era urgente.


6./ Mestre Zhihan, em entrevista (supracitada) manifestou a preocupação do Mestre Pu Hsien acerca do envelhecimento das gerações chinesas, cujos descendentes diretos não se vincularam à prática budista e ao templo. Por essa razão veio ao Brasil em 2009 para ordena-lo seu abade. Sendo este jovem monge descendente de chineses taiwaneses, criado no Canadá, se dispôs em voto monástico a administrar o templo brasileiro, e a aprender o idioma portuguêsxxvii. Situado simbolicamente no lugar ausente dos filhos daquela geração de imigrantes chineses que se fixaram em São Paulo durante a década de oitenta, tinha ele pela frente a tarefa de vincular os trabalhos no templo à realidade brasileira, a abrir as portas da diáspora taiwanesa aos paulistanos que por lá já andavam a bater desde os tempos da fundação em 1993. A adoção do idioma português foi o primeiro grande passo.


7./ A adoção do português nas cerimônias, junto ao mandarim, após dezessete anos da fundaçãoxxviii, recolocou a questão da existência e propósito da comunidade, cujo pilar social há muito fora consolidado em torno da geração de méritos. Se de saída a coexistência de idiomas e afetos eram vistos sob fundo inconciliável das culturas em contraste, a reinserção dos propósitos originais, sob o pretexto do envelhecimento e morte da comunidadexxix, amplificaram seus dilemas existenciais, até então imperceptíveis. Cerimônias passaram a integrar praticantes brasileiros, treinados pelos monges, lentamente inseridos àquela como coadjuvantes aos membros chineses. Porém, não se tratava somente da chancela monástica na outorga de um conjunto restrito de funções cerimoniais aos praticantes brasileiros – entre cantar caminhar, prostrar-se em momentos específicos diante da Joia Tríplice –, mas também implicava na reconfiguração sistêmica das cerimônias, seus símbolos e significados.


Já sabendo de antemão as dificuldades e incongruências de ordem da execução musical da cerimônia, grupos de ensaios foram instituídos sob a supervisão de monges e membros mais experientes (sobretudo na leitura dos textos em mandarim), e mesas de ofício ritual foram organizadas com monges visitantes de monastérios taiwaneses para exemplificar e restituir a prática musical correta. Porém, uma vez realizada a cerimônia (quase pedagógica), sob a supervisão dos olhares de fora, (estes retornados aos seus monastérios de origem), a comunidade retomava com toda força a praxe anterior; resistia, mais do que se predispunha à entropia. Assim, brasileiros, sino-brasileiros e chineses entrelaçados pela confluência dos idiomas português e mandarim, contrapostos à nova prática instituída, atuavam como transformadores sociais, onde as tensões eram convertidas num novo meio de ação, não raro, mais efetivo, do ponto de vista de quem experimenta e vivencia as relações em comunidade. Ou seja, para quem busca fortalecer os vínculos toda mudança é repelida, ainda que a tomada de consciência quanto a ‘impermanência’ do real seja toda base de estudo do budismo. O efeito dessa resistência natural destacava-se nas cerimônias num conjunto instável e resiliente, donde transparecia estilos pessoaisxxx, por parte dos praticantes, na condução de suas partes, sempre em vias de serem uniformizadas, como se o desejo de pertencimento fosse algo maior.


8./ E vista deste pequeno enredo, um modelo provisório de análise, para colocação do complexo cultural identitário, poderá ser este: existem aspectos específicos na formação da subjetividade entre culturas que reunidos aproximam-se de uma possível constituição de uma diáspora individual (diáspora intensiva); ou melhor dizendo, uma transfiguração de valores e sujeitos, tornados híbridos, e que operam num regime de troca simbólica altamente fértil como instável. No entanto, para entrar nesta análise, antes de tudo, é preciso esvaziar as dicotomias, e compreender todo processo de pertencimento (dos indivíduos) como um movimento regido sobretudo pelos contrastes e diferenças que aproximam (fortalecendo) e afastam (enfraquecendo) a própria comunidade de seu núcleo espiritual, de certo modo, “desejante”. Podemos ainda pensar nos temos de ‘experiência-próxima’ e ‘experiência-distante’ – citado por Geertz a partir dos trabalhos de Heinz Kohutxxxi – clivados por vivências singulares, não raro, regressivas aos vínculos primeiros estabelecidos com uma comunidade local. O difícil processo de mudança não diz respeito apenas aos aspectos individuais (seus dramas restritos) dos membros de uma comunidade, mas também se refere ao enfrentamento dos indivíduos em face dos sentidos e significados coletivos, quais sejam estes, reiterados ou dilacerados, contudo expressam um conjunto vivo e dinâmico, inexorável. Os sons do Dharma como elemento forte encarnado no exercício do canto conjunto, pela repetição da vida religiosa localizada – o templo que retoma incessantemente seu pulso existencial – serve de parâmetro para leitura de todos os componentes simbólicos e psíquicos, vivenciados pela prática espiritual budista, pelo que introduzem e apresentam de diferença ontológica.


Na história dessa comunidade foi preciso outra figura representativa, um monge jovem, que fizesse a transição entre gerações, que agenciasse as identidades (não sem conflitos), concatenando de um lado os brasileiros praticantes, cada vez mais frequentes, de outro os velhos praticantes chineses; ambos entremeados pela música, pelo canto (e encanto) dos sons do Dharma. E essa diferença prenuncia as razões e atritos mais à vista: o canto enquanto prática, o encanto enquanto imersão cultural. Neste contexto, diferentes valores atribuídos ao canto budista indicam outra ordem contraposta aos ideais fundantes dessa comunidade. Antes do apelo às raízes brasileiras, chamadas as intenções na memória coletiva, as vozes estavam lá entrosadas na consolidação da diáspora: um núcleo formante e intensivo, devotado à propagação do Dharma e a germinação de suas boas sementes. Contudo, no embate geracional entre culturas, pode-se observar que a longa permanência numa comunidade (simultaneamente, aberta e fechada) implica na reconstituição perpétua das identidades subjacentes ao entrosamento cultural (por parte do inserido), ou isto ainda: confere às formações subjetivas decorrentes do “estar entre culturas” uma instabilidade constitutiva do indivíduo que se faz pertencer, e de muitas formas, enquanto um contraste vivente, (não raro no limiar da segregação social) que não cessa de pertencer e de se desvincular toda cultura enraizada, não cessa de retomar e romper com suas raízes.


A música budista – quê música? – vem a reboque como ponto chave, ponto de tensão nos desígnios, desejos e propósitos que mantém a difícil partilha de afetos, valores e condutas comunitárias em estado de transformação. De resto, segue o esforço monumental de compreende-la.


Notas


iCujo locatário é a própria Associação Budista, que a manteve em funcionamento até meados de 2017, por razões de segurança, pelo que mantinha o movimento a frente do templo em horários comerciais. Hoje desocupada, segue em reforma para inaugurar um restaurante e delivery de comidas vegetarianas. Mantém-se assim o projeto de uma fachada comercial ao lado do grande pórtico, cuja função, para além de sua integração simbólica ao templo (o vegetarianismo associado ao clico cármico de renascimento e morte), reflete também uma transposição simbólica em duas vias: a produção de ‘causas e condições’ propícias a quem, por afinidade ao vegetarianismo, venha consumir seus produtos e partilhar de sua cozinha ‘espiritualizada’ (projeção exterior), e fachada adentro, inscrever a construção num quadro de projeções futuras quanto a emanação de um espírito budista estendida à quadra urbana (projeção interior), onde durante muitos anos apenas o pórtico com seus portões permanentemente fechados anunciava existir. A leitura da primeira frase à coluna esquerda do pórtico esclarece as suas razões fundantes (ver nota de rodapé nº4, referida ao texto).

iiMestra Yin Tsu, nome civil, Chao-Chan, ocupa a função de abadessa do templo, residente desde 1996 até o presente.

iii A tradução livre foi realizada por Henrique Pires, tradutor oficial deste templo. Autorizado o seu uso, segue no texto.

iv «佛法僧» Fó Fa Seng...


v Ordenação dos corpos possui o sentido de arranjo espacial dos indivíduos em comunidade na investidura do corpo monástico sobre alguns de seus membros, que lhes outorga um conjunto de ações específicas para a consecução da cerimônia – via de regra: cantar, prostrar, perambular, tocar instrumentos de percussão (sinos, tambores e blocos de madeira) – ações conduzidas dentro de uma hierarquia exata: Monges, Praticantes Upāsaka e Upāsikā (em vias de se ordenarem monges), praticantes Upāsaka e Upāsikā (leigos, cuja prática é distinta); ambos com Refúgio na Joia Tríplice e Preceitos Completos, e por fim os discípulos em geral.

vi As vestimentas budistas usadas pela comunidade são constituídas de um robe longo «海清» Hǎiqīng e um manto sobre o ombro direito «缦衣» Mànyī, para aqueles que receberam em cerimônia os Cinco Preceitos éticos do budismo «五戒» Wǔjiè: não matar, não roubar, não mentir, não ter má conduta sexual, não se intoxicar.


vii «地藏王普薩» Di Zang Wang Pu Sa


viii Compilação dos ensinamentos budistas, conforme preservados pela escola Teravada; usualmente referido como “canône pali”, inclui o Vinaia Pitaca, Sutta Pitaca e Abidharma, respectivamente: cânone das regras e condutas monásticas, dos discursos de Buda e a Exposição Detalhada do Dharma (ensinamentos) de Buda.


ix «師釋加牟尼佛» Shī Shì Jiā Móu Ní Fó. Buda Shakyamuni ("Sábio do Clã dos Shakyas") é também designado por ‘Buda Histórico’, que se refere ao estado de completude na sabedoria alcançado por Siddhārtha Gautama, que viveu no Nepal entre 563 ac. a 483 ac, num principado de nome Kapilavastu (atual zona de Lumbini, ao Oeste de Nepal), conforme reconhecido pela UNESCO em 1997. Disponível em: <https://whc.unesco.org/en/list/666>. Acesso em: 06/06/2018.


x A simbologia em torna da flor de lótus é rica, e contém ao menos dois significados gerais. O primeiro associado à realidade dual, ou as “duas realidades”, que preconiza uma divisão entre existência formal, convencional (corpórea) e última, traz a noção de liberdade promovida pela iluminação budista em meio a distinção ontológica entre ser e não ser; é dizer que o lótus nascendo na lama (símbolo de impureza do corpo) é capaz de produzir uma rara beleza, sublime. Por analogia a iluminação, o trono de lótus representa a possibilidade de libertação dos ‘grilhões da existência’ (conforme a imagem budista recorrente) em meio as impurezas, ao sofrimento inerente à vida.


xi Em chinês: «智翰法師» Zhìhàn Fǎshī, onde ‘Fǎ’ significa lei, regra, instituição, estatuto (no contexto budista acresce-se ‘doutrina religiosa’); ‘Shī’ significa: mestre, professor. Dentre as traduções correntes situa-se ‘Mestre/Professor do Dharma’.


xii «大蒙山施食法會» ‘Dà Méngshān Shīshí Fǎhuì’. Em uma tradução aproximada: “A Grande Cerimônia de Oferenda de Comida aos Mortos e Fantasmas Famintos pela Assembleia do Dharma” ou “Grande Cerimônia de Oferenda do Néctar do Dharma aos Mortos e Fantasmas Famintos.”


xiii Literalmente, a “virtude do esforço”. Segundo Tanabe (2004) representa “a virtude carmica adquirida através de ações morais e rituais; amplamente consideradas como o fundamento da ética budista e da salvação.” Significa, portanto, um meio de ação individual específico voltado a produção de carmas positivos que influem diretamente sobre a vida presente.


xiv O Sangha ou 僧伽 sēngqié, é traduzido “corpo monástico” (os monges), como parte indissociável da Joia Tríplice do Budismo: «佛法僧» Fó Fǎ Sēng, respectivamente, Buda, Dharma (ensinamentos ou doutrina) e Sangha (monges).


xv Dois templos budistas chineses em São Paulo, Templo Tzong Kwan e Templo Zu Lai, foram fundados nestas circunstâncias “O templo foi fundado principalmente pela comunidade taiwanesa com o objetivo de praticar e divulgar o Budismo.” Resposta dada em entrevista pela Monja Yin Tzu (nome civil: Chao-Chan) ao Portal Jornalismo ESPM. CHAN, Chao. Templo Tzong Kwan divulga Budismo na região da Vila Mariana: entrevista. [fevereiro de 2000]. Entrevista concedida a Pedro Amaral. Disponível em: <http://jornalismosp.espm.br/vila_mariana/templo-tzong-kwan-divulga-budismo-na-regiao-da-vila-mariana/>. Acesso em: 27/10/2017. E quanto a fundação do Templo Zu Lai em Cotia: “Em abril de 1992, o Venerável Mestre Hsing Yün fora convidado para oficiar a consagração do Templo Budista Kuan Yin, em São Paulo ocasião na qual estavam presentes à cerimônia, o senhor e a senhora Chang, generosos discípulos, que se encheram de alegria ao ouvir as palavras de Darma do Venerável Mestre. Repetindo o gesto do nobre Anathapindika, o casal Chang doou o sítio da família que deu lugar ao templo denominado Zu Lai pelo Venerável Mestre.” Disponível em: <http://www.templozulai.org.br/historia.html>. Acesso em:10/06/2018.

xvi A geração de méritos entre budistas chineses representa o vínculo mais forte dos leigos com o corpo monástico. A busca individual por méritos derivados de uma prática correta dos ensinamentos budistas (Dharma) é de grande importância nas comunidades chinesas religiosas, uma vez que se entende que a realização da sabedoria, resultante da profunda transformação do ser humano, somente é possível pelo exercício do conjunto de três práticas preliminares que a definem: prática da compaixão, sabedoria e meditação, cujos exemplos estão representados nos monges.


xvii Nome oficial em chinês: 佛光山如來寺 Fóguāng Shān Rúlái Sì. Menção informal na internet e mídias sociais como 巴西如來寺 Bāxī Rúlái Sì


xviii A analogia do carma com a semente (que brota) é exemplo bastante frequente nas comunidades buditas, nalguns casos encarnando os discursos institucionais, por exemplo, na interpretação do Templo Zu Lai: “A semente de uma planta pode ser armazenada por muitos anos, mas brota e se transforma em planta, do mesmo tipo da anterior, assim que encontra as condições corretas. Da mesma forma, todos os nossos atos propositais produzem sementes que ficam armazenadas em nossa consciência. Tão logo se apresentem as condições adequadas, a semente brota e cresce. O Buda disse que o carma é como o aroma, que continua no frasco mesmo depois de acabado o perfume. Do mesmo modo, persistem os hábitos, as tendências e o carma de uma vida, até a próxima vida. Em suma, pode-se dizer que são três os aspectos mais fundamentais do carma: [1] A semente cármica, uma vez produzida, não pode ser destruída; [2] O resultado cármico de uma causa cármica será do mesmo tipo desta causa e cada um receberá os efeitos de todas as causas cármicas que gerou, e apenas dessas causas; [3] O carma é a força que nos aprisiona ao ciclo de nascimento e morte.” Disponível em: <http://www.templozulai.org.br/carma>. Acesso em: 11/06/2018.


xix A literatura budista a este respeito é repleta de exemplo de praticantes que convivendo muito próximos de Mestres do Dharma, monges notáveis, beneficiam-se de suas práticas exemplares de modo direto, não raro, alcançando estados de iluminação e sabedoria, distantes aos praticantes isolados, ou fora dos templos e da convivência monástica. Vide, Sutta...


xx “Ao ser criado, o Templo Zu Lai mantém a tradição de realizar regularmente as práticas e cerimônias das Escolas de pensamento budista Chan e Terra Pura, oficiando cerimônias de “Oito Preceitos” e retiros de meditação. Orientada pelos preceitos do Budismo Humanista, a ações que o Templo Zu Lai e a Blia empreendem, desde a época de sua criação, baseiam-se em quatro pilares estabelecidos pelo Venerável Mestre: o cultural, o educacional, o das ações sociais e o das práticas religiosas.”


xxi Vale notar a analogia com a lotus


xxii Esta noção já foi ensaiada pelo sociólogo e orientalista Marcel Granet (1884 – 1940), sob a influência do pensamento de Émile Durkheim (1857 – 1917), no que diz respeito ao conjunto de representações que no pensamento chinês clássico ordenam os locais de convivência ritualizada. Granet aponta, em meio a um conjunto de considerações acerca da figuração central de um soberano, representante de uma ordem atribuída como superior, como uma reunião de dignitários cumpre seu propósito pela delegação de um poder de animação específico, cedido pelo imperador, na forma de uma criação rítmica e constante do espaço, ‘poder de animação’ como ele diz. A exposição do Granet é longa e digressiva, e diz respeito as estruturas chinesas de pensamento que não opõem os indivíduos aos espaços de convivência, mas tornam estes enquanto figuras de agenciamento do real, que no sentido mais amplo infere numa capacidade de concretização simbólica encarnada nos corpos e suas ações específicas. (Granet, )


xxiii A ideia foi gestada nos anos seguintes, e, em 2011, quando as escalas de permanência do já então abade Mestre Zhihan em São Paulo alargaram, se deu início ao trabalho de transcrição das partes da cerimônia ordinária, contendo os seus sutras, mantras, dharanis e cânticos devocionais.


xxiv Prática de substituição de um texto por outro sem mudanças musicais significativas.


xxv Sendo o idioma mandarim uma língua tonal, sobretudo sintética, muitas vezes um único fonema traduzido equivale a quatro ou cinco sílabas (no caso de palavras paroxítonas ou proparoxítonas), o que tornava as frases cantadas em até quatro vezes maior do que o original. Assim, a recitação de um Sutra que durasse quarenta minutos se estendia a duas horas e meia.


xxvi Por “colorido” refiro-me a cor sonora (ou timbre) do mandarim cantado, que a despeito da compreensão do idioma por parte dos brasileiros, ainda assim suscita uma apreciação estética pautada na beleza dos contornos melódicos das vozes femininas, na ressonância das vozes graves masculinas durante a recitação dos Sutras, estes especialmente constituídos de fórmulas melódicas reiteradas, à semelhança dos mantras.


xxvii É digno e nota o esforço pessoal deste monge a servir de exemplo a comunidade de imigrantes, visto em tão pouco aprender o idioma português a ponto de cantá-lo corretamente.

xxviii Embora o Mestre Pu Hsien, o fundador, tenha lançado essa renovação em 2009, a iniciativa se arrastou por três. Foi oficialmente concretizada em meados de 2010, onde se recitou pela primeira vez no Brasil o da Prajñā-pāramitā, também conhecido por Sutra do Coração, a partir da versão chinesa. Texto foi popularizado pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860).


xxix Cabe notar aqui o a força simbólica dessa díade. Nos ensinamentos budistas, nascimento, envelhecimento e morte ocupam lugar de grande destaque, visto ressaltarem a condição impermanente da existência humana, na efemeridade e impureza dos corpos, que embora possam produzir recursos propícios a sua libertação, ainda padecem. Na liturgia budista o exemplo é dado por Buda na celebração do Vesak, a saber, data que se comemora o Nascimento, Nirvana e Parinirvana do príncipe Sidarta Gautama, o Buda Histórico, ou ainda Buda Shakyamuni, representante da época cósmica atual.

xxx Nota-se na recitação dos sutras, conduzidos por brasileiros, ou na condução rítmica do grande peixe de madeira que marca o pulso e as diferentes velocidades das recitacões...


xxxi Geertz, O Saber Local, p. 61.

Segue abaixo o texto integral, e link ao final para download.


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