Em busca de um repertório
Relatos André Ribeiro, Jul 2021
Nos últimos anos têm surgido cada vez mais composições autorais para guqin, no que poderíamos chamar de repertório moderno. Acontece que as escolas de qin têm visões diferentes a respeito do que seja o moderno, e sobretudo, o que significa a palavra "repertório".
Em geral, o repertório de guqin com o qual os músicos estão acostumados a lidar é constituído de melodias recuperadas das antigas coletâneas Ming (1368-1644), usualmente chamadas de Qinpu 琴譜. Literalmente, "partituras de qin."
No entanto, a grande parte dos instrumentistas 'qin players' fora da China se referem às essas coletâneas empregando a palavra inglesa 'handbooks', cujo sentido que adotamos em português é próximo ao de um "manual". Isso se explica pelo fato das principais coletâneas frequentemente incluírem, além das partituras, informações técnicas sobre luthieria, fabricação de acessórios, maneiras de estudar as peças, bem como ensaios filosóficos sobre a arte do qin.
Portanto, aquilo que se entende por repertório não está restrito a uma listagem de peças. De fato, a palavra tem sentido mais amplo, voltado à uma cultura que valoriza a produção de saber histórica documental vinculada ao qin. Em termos simples, a palavra "repertório" significa um conjunto maior de textos e tablaturas que amparam as performances, aos quais se pode (e se deve consultar) com frequência.
Vai daí um dos aspectos centrais às políticas repertoriais em voga nas comunidades de qin ao redor do mundo: uma melodia só passa a figurar no repertório oficial de uma escola, associação ou conservatório, na medida em que é circunscrita por um conjunto de práticas, ideias e valores adotados para pautar estilos interpretativos próprios. A formação de repertório em associações e escolas envolve formas de legitimar o estatuto social do qin enquanto se faz fonte de repercussão de idéias e noções a respeito da arte.
Em suma: repertório significa a produção filosófica de uma escola.
Portanto, entende-se o porquê das inúmeras resistências e indiferenças das associações e comunidades quanto às músicas autorais, ou simplesmente comerciais, que abundam no YouTube. A inclusão de peças novas no repertório de uma associação, usualmente, é fonte de controvérsias, seja porque não espelha os princípios orgânicos de uma associação, ou porque não adere aos valores estéticos cultivados.
Em uma política repertorial tão circunscrita, novas composições, ainda que saídas das mãos de grandes intérpretes, costumam subsistir na marginalidade, quando muito, apresentadas pelos próprios compositores intérpretes em recitais privados. Logo, não é um tema popular, e nem tão bem-vindo para se dedicar a um encontro formal.
Contudo, foi o que aconteceu recentemente em uma das mais antigas associações de Qin no Ocidente. Pensando numa forma de pôr em cena as razões dessa marginalidade da música atual para qin, a New York Qin Society organizou um Yaji online sob o tema "Qin & Composition". A iniciativa veio para dar espaço aos novos compositores apresentarem suas músicas, e compartilhar seus processos criativos — e assim acabei re-compondo uma melodia que improvisei em 2017, sob o nome de « Chaoyuè chénmò 超越沉默 » sem nutrir grandes expectativas. Segue abaixo o meu relato.
Domingo 13/07 (2021).
Loguei na sala alguns minutos antes para o ensaio. Uma breve passagem de som, e logo abriu-se a sala virtual para o público. A primeira peça do repertório foi composta e interpretada por Shui Shan Yu 于水山, cujo título original é “Odes of Zhounan: Guan! Cry the Ospreys” 關雎 de seu álbum de composições “Airs of the Fifteen States” 十五國風. Uma peça excelente tanto do ponto de vista compositivo como técnico interpretativo. Foi muito bem recebida, aliás.
Os participantes a seguir, a maioria, tinha alguma relação prévia com a música clássica ― e as peças, por sua vez, e para minha total surpresa, traziam as marcas escancaradas da música experimental cageniana. Oras, faz sentido! John Cage sempre foi ligadíssimo nas músicas da Ásia, e sua obra ecoa até hoje na música de concerto norte-americana.
Mas daí para o guqin é um passo enorme. Nunca imaginei num primeiro encontro deste escutar ecos de suas peças. A influência transpareceu forte na quinta, peça do programa, um tríptico do jovem compositor e qin player sino-americano Bin Li 李彬:
1) Untitled (in ancient style), for Qin Solo; 2) To Hear, for Qin & Various Instruments; 3) Pensées, for Qin & Dancer (1:44:20)
A última desse trio foi composta para guqin, eletrônica e cênica. Uau! que combinação fora do campo hiper tradicional do guqin!
Apresentava um degradê sonoro a partir da gravação de um dos glissandos do instrumento para representar um tempo que nunca passa, nunca nos atravessa. Um constante deslizamento sobre uma das cordas em moto perpetuo — contraposto a um ator encenando o porre eterno da quarentena.
Sentado num sofá bem surrado de apartamento, o ator de bermuda e uma camiseta regata levantava e sentava repetidas vezes, cruzando e descruzando os braços, ao som do glissando eterno, esticado ao máximo no tempo. Eram uma hora e quarenta e quatro minutos de apresentação.
Mas para não aborrecer demais os espectadores ansiosos por movimento, fora reduzida a 5 min. Levanta, senta, cruza os braços, descruza os braços, levanta, senta, cruza os braços, descruza os braços, levanta... e o glissando que nunca alcançava a nota de chegada. O caráter sisudo que se espera de um encontro desses foi quebrado de início. Além dessa, teve também um Blues Havaiano com scordatura nas cordas do Qin composta por Jim Binkley, luthier, qin player e compositor.
« Chaoyuè chénmò 超越沉默 »
Quanto a minha peça, "Chaoyue Chenmo: Além silêncio" um fato curioso, embora usual a quem está mais próximo da tradição: ela suscitou opiniões contrárias. De um lado manifestou algum interesse quanto à formatação da composição em ambiente estritamente modal, de outro causou a impressão de incompletude quanto às cadências modais, isto é, as notas finais que fecham as melodias.
Foi para mim uma experiência mista.
Apesar de flertar com a tradição, e ao mesmo tempo se desprender dela, causou mais estranhamento do que uma música experimental cageniana. Para quem está bem ambientado (ou cercado) pela tradição, ouvir uma peça que se encaixa mais ou menos no repertório é como escutar alguém articular um idioma padrão, no entanto, com o código alterado.
De todas as peças, a minha foi a única que jogou com o meio de campo entre o modalismo formal do Qin e algum toque de classicismo europeu. E, claro, chamou a atenção pela estranheza. Entendo o motivo técnico que escapa. Quando se fala um idioma estrangeiro deve-se seguir a codificação da língua segundo os usos e costumes. Alguém que se expressa numa língua estrangeira, em contexto original, mas de alguma subverte ou apenas flerta com o código, tende a estranhar os outros. É como alguém que se expressa verbalmente, trocando a ordem dos termos de uma frase, e até mesmo, se permitindo suprimir algumas palavras. Sem dúvida, provocará estranheza. Em parte, é o que o dialeto faz! E seria muito útil pensar numa técnica dialetal para esses escapes, que circundam uma tradição sonora.
Mas isso é apenas parte da explicação.
É preciso levar em conta que, entre músicos conservadores, a escuta formalmente treinada para o reconhecimento de estruturas homogêneas e correspondentes se estabelece sempre num círculo vicioso. Tudo que foge à previsibilidade, ao esperado, à expectativa de reconhecimento, é tido como erro. É algo fora do eixo.
O refreamento do novo, portanto, tem mais a ver com dificuldade de se desenclausurar-se da obsessão de abrandar a percepção, de desobsediar-se de mantê-la em rédeas justas (e dessa forma assegurar auto-afirmações de si como relevante para a sustentação de uma prática musical) do que trabalhar a escuta como referencial de abertura e compreensão do mundo.
Encarar a escuta a partir de outra perspectiva, favorecendo processos de abertura, certamente, leva à reformulação ou pelo menos à aceitação de que a identidade artística também é (e deve ser) algo mutável. Conduz igualmente ao fato de que uma tradição só se sustenta enquanto força viva, justamente quando acolhe o novo, o inesperado, transformando-o para resistir ao vento das mudanças.
A tradição vive apenas quando há uma relação vivente com o passado, de inclusão do presente. Em miúdos, arrisco a dizer, significa que aquele que se volta ao passado o vê a frente, ao invés de atrás de nós (como usualmente somos levados a crer). O passado não é espelho do futuro. O futuro é o nosso presente. E é no presente que criamos futuros possíveis para escapar das tiranias do amanhã.
Quem está ancorado no dogmatismo, no exercício imperativo do congelamento do passado, tende a requerer do outro a confirmação do lugar soberano da música na escuta. O conservador sempre reage, crendo estar a serviço de uma defesa da tradição. E, por isso, invariavelmente erra o alvo. Um músico conservador, pouco dado à redescoberta da tradição no presente, acaba por manifestar o desejo de subjugar a escuta alheia, torná-la cativa e, simultaneamente, dependente de seu pressuposto entendimento do que seja uma tradição musical.
Mas nunca, nunca se pode esquecer a máxima de que para assegurar a continuidade de qualquer tradição, deve-se em algum momento traí-la, de modo que o dogma moribundo possa reviver em outra parte da história, religando os significados originais, que nem sempre são aqueles sobre quais o conservadorismo se estabeleceu, e arrastou-se durante séculos, num mesmo corpo de conhecimento e preservação de costumes que já não reflete mais a percepção do ser humano atual, cercado por um mundo que mal compreende o processo.
“Conservar” cultura sempre implica na aceitação da mudança implícita a qualquer investimento afetivo e intelectual, sobretudo coletivo, voltado ao objeto cultural estimado. Assim, se eu olho uma pintura antiga, sob hipótese alguma posso afirmar que meu olho, minha sensibilidade moderna baseada em uma visão moldada socialmente para enxergar certas coisas que correspondem ao meu modo de ser em vida, de modo algum posso dizer que o meu olhar é o mesmo ou sequer próximo dos antigos. E ainda que muitas informações históricas abasteçam o meu percurso de entendimento, todas elas estão condicionadas à interpretação histórica realizada no momento em que vivo e que malemal entendo.
Acreditar que o escrutínio histórico, a compilação de informações irá sustentar o meu entendimento do passado (que dirá o passado remoto) não significa apenas apoiar-se numa visão grosseira da história pregressa, como também envolve acreditar em tigres de papel, apenas porque todas as descrições me informam que o são. Há muito mais coisa debaixo do pano, do verniz histórico que se lustra habitualmente para captar o brilho do que imaginamos. É sempre bom lembrar que aparência nem sempre se transforma em prática concreta. Há muitas performances "antigas" no YouTube que apenas estão lá porque nos parece ser algo milenar. Só parece.
Aliás, a aparência, a performance do antigo não é coisa nova. Houve um momento disruptor na dinastia Ming em que os músicos performatizavam simulacros, mirando nos ganhos financeiros e sociais que poderiam obter com isso. Apenas uma parcela muito pequena de instrumentistas seguia estudando guqin à portas fechadas em pequenas comunidades, apresentando-se para poucos. Ou seja, nada de novo no horizonte. Até hoje é assim.
É fato que os conservadores da tradição da arte do qin, na relação com as músicas atuais, sofrem o impacto da perda de identidade sem saber de onde vem a força que os força a se resignarem, muitas vezes, numa distorcida visão de arte. Como que impelidos a uma versão antiga do presente cressem estar acessando alguma parte perdida da história que julgam resgatar, quando ocorre justo o contrário: a tradição os deixa à deriva, desconectados do presente.
Toda essa reflexão me veio pela perplexidade diante os comentários que ouvi, de um e outro, sobre a inadequação de minha peça, pelo que não cumpria bem com o papel de "contemporânea'' e nem “tradicional”. Ela foi relegada a uma espécie de limbo sem representação. Claro, não penso nem sinto assim. As conexões que fazemos com as coisas através da música são sempre desviantes e subversivas. Que bom, não é mesmo?
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