top of page

O Resumo da Ópera II

O nascimento da ópera de Pequim



Abaixo transcrevo a sergunda parte do artigo sobre a Ópera de Pequim, publicada na edição nº4 de Julho de 2020: um guia histórico sobre o surgimento desse gênero teatral.

Nele apresento os elementos estéticos desse patrimônio da humanidade. Segue abaixo o texto integral, e link ao final para download no https://usp-br.academia.edu/AndreRibeiro


O Nascimento da Ópera de Pequim

IC Confúcio, Maio 2020


Diferente das outras artes chinesas, a Ópera de Pequim tem um passado recente, pouco mais de duzentos anos de história. Ela surge em 1790 quando as trupes populares de Anhui chegam a Pequim para as comemorações do aniversário de oitenta de anos do imperador Qianlong (1711-99).

Os artistas de Anhui eram famosos por trazerem na bagagem uma rica mistura das artes do palco — mímica, dança, acrobacias e artes marciais. E devido a essa característica Qianlong os convocou a capital para participar das festividades. Mais do que mera curiosidade era tradição entre a elite manchu patrocinar trupes de teatro popular, na maior parte da vezes, sem a chancela do estado. Líderes políticos e membros dos gabinetes imperiais as viam como um risco em potencial para insurgência de grupos e associações clandestinas contrárias aos interesses do império. Não era a primeira vez que o imperador convocava trupes de ópera para irem à capital. Quando sua mãe, a imperatriz Xiaosheng (1692-1777), fez 60 anos as trupes de ópera foram convocadas para as festividades.


Mais do que mera curiosidade era tradição entre a elite manchu patrocinar trupes de teatro popular, na maior parte da vezes, sem a chancela do estado, ou seja, dos líderes políticos e membros dos gabinetes imperiais que as viam como um risco em potencial para insurgência de grupos e associações clandestinas contrárias aos interesses do império.


Isso porque grande parte das companhias teatrais eram mantidas por guildas comerciais de cunho religioso (associações) dirigidas por comerciantes e homens de negócio, cuja influência nos diversos setores da sociedade era vista com desconfiança. Portanto, entre os membros da administração, a ópera popular constituía-se num foco permanente de atritos; algo que Qianlong estava disposto a ignorar visto sua paixão falar mais alto.


Não era pra menos. Quando as trupes de Anhui chegaram a capital a repercussão foi tremenda! Uma vez em Pequim cativaram o povo imediatamente, a ponto do governo ter de aprovar às pressas uma série de medidas para a regulamentação da nova forma teatral. Com isso, pretendia-se reforçar a distinção posta entre as formas teatrais populares, daquela outorgada e estimulada sob os auspícios do estado, tida como benéfica para a moral do povo.


Durante séculos a arte teatral foi dominada pela Ópera Kunqu, um gênero forte e representativo do estilo de vida da elite palaciana desde o período Ming (1368-1644) e estendido à vida comum enquanto modelo oficial de entretenimento. No entanto, as trupes de Anhui mudaram este cenário.


Os atores Kunqu eram os representantes de uma arte sofisticada e elegante em contraste às trupes populares de música e dança. Porém, a apreciação das peças e enredos exigia do público um grau elevado de refinamento literário para acompanhar as tramas intrincadas, uma vez que o estilo Kun caracterizava-se (bem como delimitava-se) pelo uso de uma linguagem essencialmente clássica. E neste quesito fazia franca oposição aos demais gêneros teatrais que abundavam no período Qing, muitos dos quais faziam uso de coloquialismo nas falas sem se ater às convenções e formalismos estéticos.


Em contraposição, especialistas afirmam que Ópera de Pequim desde o início caracterizava-se pela fluidez e versatilidade por meio do empréstimo de técnicas de representação e características de outros gêneros teatrais, e que uma vez apropriadas integravam uma amálgama forte como reconhecível pelo público de diferentes regiões da China.

Isso explica a rapidez com que ela se consolidou uma arte nacional, já que manifestou desde cedo o seu caráter cosmopolita. Desse modo, enquanto uma forma teatral acessível a todos, ela se colocava à frente das outras artes.



Porém, não foi apenas conjugando traços e elementos de outras expressões teatrais que ela veio a tomar a dianteira. Dentre as inovações que a impulsionaram uma delas foi decisiva para conquistar público: a encenação dos ‘melhores momentos’ do repertório, e que funcionava como uma vitrine para a exibição das habilidades dos atores.


As apresentações eram arranjadas de forma a encadear uma ampla seleção de cenas tiradas do repertório teatral, sem a necessidade de cumprir os roteiros do início ao fim. Dessa forma o foco dos espectadores se deslocou da trama, que às vezes custava dias de apresentação, para a performance pontual dos atores.


O público, cada vez mais interessado na caracterização dos personagens e no conjunto das habilidades que cada ator exprimia em cena, passou a enxergar na ópera a expressão do grau de maestria dos atores. Estes, por sua vez, passaram a dedicar-se exclusivamente à criação de novos personagens, testados em cena, para fomentar novos enredos por dramaturgos contemporâneos.


Em grande medida a prática fez aumentar o interesse pela performance, com maior presença de ação dos personagens (na exibição das artes marciais e acrobacias). Consequentemente, o desfecho passou a significar menos do que a atuação pontual e hábil de certos papéis teatrais. E assim os teatros comerciais passaram a exibir programações ininterruptas de trechos de ópera.


Se por um lado a espontaneidade beneficiou o surgimento atores talentosos, de outro diminui progressivamente a aura de elegância e virtuosidade dos enredos operísticos chancelados pela corte, em certo sentido, popularizando-as, no entanto, sem anulá-las. Isso porque muitos atores Kun atuavam em trupes populares — e não era incomum o intercâmbio entre uma forma teatral e outra, assim como diferentes públicos se frequentavam num mesmo espaço, em geral, em teatros comerciais fora dos limites da cidade.


Posta em relevo, a figura do ator resumia o novo gênero numa síntese inédita como incomum: de um lado as culturas populares, de outro a tradição palaciana, virtuosa, moralista, numa palavra ‘secular’; ambas ligadas pela vida efervescente da capital — a cidade como pano de fundo das culturas urbanas interligadas, os teatros comerciais como um setor alternativo da sociedade. Razão pela qual as casas de ópera não gozavam de boa reputação na percepção do poder público, uma vez que representavam territórios neutros ao convergirem entretenimento, política e negócios.


A despeito do entusiasmo e desconfiança que dividia os nobres e plebeus, os ventos sopravam forte nos bastidores, e impulsionada pelas tensões e burburinhos sociais a Ópera de Pequim ascendeu como forma dominante, essencialmente popular.


A soma de diversos traços e elementos regionais, incorporados por atores habilidosos, favoreceu a rápida expansão do estilo de Pequim, que em pouco mais de setenta anos consolidou-se como gênero teatral nacional, difundindo-se por todo o território. Cada região da China abriu a sua casa de ópera ao estilo de Pequim, acrescentando suas próprias características regionais.


das casas de chá para o mundo


De início, na passagem ao século 19, as trupes se apresentavam nos pátios das casas tradicionais que eram abertas ao público em geral — não apenas membros da família real, funcionários e estudiosos, mas também comerciantes e pessoas da cidade.


Esse locais ficaram conhecidos na cultura urbana como as “casas de chá” a céu aberto, ou simplesmente os “pátios do chá”. Ali, as pessoas pagavam para tomar chá, mas não pela ópera que assistiam. Ela ainda era, por assim dizer, “música ambiente”; semelhante aos bares de hoje em dia que tem música ao vivo, mas nem sempre cobram couvert artístico, sobretudo quando o local onde se reúnem os consumidores está a céu aberto.


Com a popularidade crescente esses locais foram transformados em teatros, e na era republicana passaram a servir como espaços de comunhão social entre atores e público. A passagem do governo imperial à república em 1912, pautada no conceito de estado-nação, ampliou a representatividade da ópera. Se antes ela era a expressão simbólica da confluência das culturas em Pequim, passou a expressar um ideal, acima de todas as classes sociais — o palco como representação de uma nova ordem social.


Nas primeiras décadas do século 20 ela passou por uma ampla metamorfose, tanto na evolução dos enredos que vieram a refletir a vida comum, e seus personagens cada vez mais próximos da vida comum, como na assimilação de pautas e bandeiras políticas que se propôs a levantar. Deixava de ser um estilo regionalista-urbano para se tornar em uma forma universal de representação da nova sociedade.


Em pouco tempo a Ópera de Pequim conquistou os palcos internacionais nas mãos de artistas renomados, dentre eles, Mei Lanfang (1894-1961), o ator mais famoso da ópera de Pequim, uma inspiração para todas gerações posteriores.



Em 1930, Mei Lanfang a popularizou internacionalmente levando as trupes aos palcos do Japão, Rússia, Estados Unidos e Europa, conquistando uma legião de fãs dentro da elite artística mundial, por exemplo, Bertold Brecht — que fascinado com as suas performances aplicou as técnicas essenciais da ópera de Pequim em suas próprias produções teatrais — e ainda, o cineasta russo Serguei Eisenstein, o dramaturgo Constantin Stanislavski, e até mesmo Charles Chaplin.


Iniciava assim aquilo que viria a ser internacionalização do gênero; a Ópera de Pequim atuando como a vitrine chinesa para o mundo, porém, bruscamente interrompida na década de 1970 com a Revolução Cultural. O século 20 assistiu mais de uma revolução chinesa, e neste meio de campo a ópera perdeu um pouco daquele frescor e vivacidade que a caracterizava em seu espírito indômito.


É certo que muitas águas se passaram desde de Qianlong — e foi somente às portas séculos 21 que profissionais da ópera estabeleceram novos caminhos para revitaliza-la, e conquistar a audiência jovem, apesar do distanciamento do público, atraído por TVs a cabo, serviços de streaming e cinema. A grande parte dos esforços para renova-la, entretanto, teve por efeito cristaliza-la em vista do ritmo incontrolável da modernidade.


Muito em virtude desse refreamento do cenário operístico na Era da Globalização que, em 2010, a Ópera de Pequim foi declarada pela Unesco patrimônio cultural intangível da humanidade, assim como a Ópera Kunqu havia sido em 2001 — uma atitude nobre como um estímulo forte para manter o valor desse imenso patrimônio cultural da China.


Quem sabe neste novo mundo, pós-pandemia, as pessoas possam se re-ligar novamente às forças restauradoras da cultura ancestral, e assim, talvez, assistiremos a mais uma de suas reviravoltas estonteantes? Não duvide! Pois a mágica não está nos olhos de quem vê, mas naqueles que sentem as tradições artísticas como parte de sua pertença fundamental num mundo em constante mudança.



Comments


bottom of page