O Resumo da Ópera
Uma viagem pelo universo dos personages da Ópera de Pequim.
Atuo como colaborador da revista de o Instituto Confúcio desde 2018. De lá pra cá tenho escrito com regularidade artigos sobre o universo fascinante da música chinesa.
Recentemente escrevi um artigo em duas partes sobre a Ópera de Pequim: um guia de apreciação centrado nos personagens e uma introdução ao surgimento do gênero.
O primeiro foi publicada na edição nº 3 de maio de 2020, sob o título "o resumo da ópera". Nele apresento os elementos estéticos desse patrimônio da humanidade. Segue abaixo o texto integral, e link ao final para download no https://usp-br.academia.edu/AndreRibeiro
Para apreciar a Ópera de Pequim
IC Confúcio, Março 2020
O palco resume o mundo. No universo da Ópera de Beijing ele é o centro vibrante da alma milenar chinesa. Sua magia está nos atores que evocam toda uma gama de personagens, humanos e não humanos, para prestar o seu testemunho diante da civilização, ou sentenciá-la perante um passado forte como decisivo para as escolhas de toda uma sociedade. O passado em cena é a forma com que os personagens se anunciam como os seus guardiões eternos, lançando um fio invisível que interliga o público sob o olhar de seus ancestrais.
Em busca da arte total
A magia está no palco. Mas na Ópera de Pequim é surpreendentemente vazio. Com alguns acessórios essenciais — um pano de fundo bordado e uma mesa com quatro cadeiras — os atores se tornam o principal foco do espetáculo. Sendo uma arte teatral que envolve um domínio técnico variado, desde cantar, dançar e realizar acrobacias, a ênfase não está na fala, no diálogo (como no teatro ocidental), mas na linguagem corporal cultivada de cada artista.
Por essa razão os atores são treinados desde cedo em algumas habilidades básicas do canto, fala, dança e o combate, e que envolve as artes marciais com ou sem armas (facas, espadas e lanças) e também acrobacias. Somente quando conquistadas é que eles podem começar a trabalhar com os papéis e personagens.
A performance é alma do Ópera de Pequim. Apesar da representação dos papéis ser o elemento chave na evolução das tramas, acima de tudo, cada artista deve ser capaz de traduzir e ampliar no corpo as características marcantes de cada persona que incorporam num rol variado de estilos e técnicas de expressão. Não sem passar anos desenvolvendo gestos, trejeitos e maneiras de se auto conduzir em cena visando o máximo de efeito visual.
Costuma-se dizer que a Ópera de Pequim tem apenas quatro personagens. Porém, para ser mais exato, são quatro categorias gerais que contém todos os papéis da ópera. À semelhança da divisão dos papéis no teatro ocidental em protagonista, antagonista, coadjuvante, figurante, os papéis na Ópera de Pequim estão organizados de acordo com quatro ‘arquétipos teatrais’: Sheng (homens), Dan (mulheres), Jing (heróis, deuses e seres míticos) e Chou (palhaços), cada um com o seus tipos de subtipos.
Para quem não está acostumado com a distinção entre papel e personagem, vale notar que papel é trajetória de um personagem no enredo, enquanto o personagem é o conjunto das características fixas que sustentam a sua identidade e personalidade.
Por exemplo, o personagem ‘Su Wukong’, o lendário ‘Rei Macaco’. Ele é impetuoso, ousado, imprevisível, possui força e habilidades sobrenaturais; é capaz de percorrer grandes distâncias em velocidades altíssimas, de paralisar o tempo com magias poderosas, e ainda de se transformar em vários animais e objetos. São estes os atributos do personagem. O seu papel, ou a forma como ele se desenvolve na trama — quais serão as suas ações e decisões — varia de acordo com o enredo.
Confusão é frequente! Nada mais justo do que reafirmar a capacidade dos atores de reconstruírem os personagens, passo-a-passo, por meio do estudo minucioso de suas características e papéis, para colocá-los em cena de modo criativo.
Para além das características fixas que tecem o colorido subjetivo dos personagens, há ainda os elementos visuais da performance como as maquiagens, as vestimentas, os gestos, mímicas e acessórios de palco (armaduras, lanças, leques, bastões), isso sem contar as diferentes formas de impostação da voz no canto, que pode variar muito, segundo a personalidade e caráter de cada um dos personagens.
Todos esses elementos cativam o olhar da plateia e carregam de significados as performances — ou simplesmente, ampliam pelo efeito visual os componentes dramáticos em cena. Justo dizer, o trabalho de um ator de ópera é extenuante! No mínimo ele trabalha por quatro até descobrir seu verdadeiro potencial que determinará a escolha dos papéis e personagens em uma só categoria.
Para entender os personagens e suas categorias é costume listar alguns pontos que ajudam os espectadores (sobretudo ocidentais) a se localizarem nos enredos. Então, vamos lá!
Categorias de papéis e personagens
Sheng é a primeira categoria. Nela estão os personagens masculinos fortes e respeitáveis: imperadores, príncipes, estudiosos confucionistas, nobres e membros da elite palaciana, e até mesmo chefes de família. Essa categoria é subdividida em três grupos: a dos velhos senhores feudais e dignitários (‘Laosheng’) de personalidade gentil e cultivada. Usualmente, eles são retratados com barbas longas postiças para indicar desde velhos letrados, oficiais da corte, ao imperador — em geral, a voz no palco é suave e acolhedora.
A segunda é voltada aos personagens com habilidades marciais (‘Wusheng’), e reúne guerreiros do alto escalão até criminosos, estes últimos mais propensos a se envolverem em combate corpo a corpo. No geral, eles são retratados com armas, lanças, espadas, bastões e armaduras.
E, por último, a terceira dos jovens eruditos, freqüentemente envolvidos em aventuras românticas. Para se distinguir dos demais eles usam maquiagem mais pálida e sem barba. Os personagens variam entre jovens oficiais (com ou sem habilidades marciais) e letrados que vivem na pobreza, incluso os adolescentes e crianças. Sua voz no palco oscila entre forte e estridente, ou suave em falsete, e se aproxima em alguns momentos das personagens femininas (Dan).
A segunda categoria é Dan. Nela se encontram desde donzelas, princesas, damas, guerreiras à velhas senhoras rabugentas, cada qual com sua personalidade exclusiva, e as muitas maneiras sutis de expressar os códigos de conduta no universo feminino. Elas apresentam inúmeras facetas e maneiras de se autoconduzir nos bastidores da elite palaciana, expondo-se de muitos modos, e conduzindo com grande habilidade as principais decisões dos protagonistas masculinos. É uma categoria muita rica de papéis, a qual exige muito das personagens no que se refere à expressão corporal, e no controle de gestos mínimos dos olhos e rosto, para provocar o máximo de clareza na interpretação de suas intenções nas tramas.
A terceira categoria é Jing, voltada aos deuses, semideus, humanos e seres mágicos, e por isso, talvez seja a mais complexa. Além dos seres míticos, inclui os heróis e anti-heróis, tais como rebeldes corajosos, ministros ardilosos, juízes honestos e corruptos, generais poderosos. O ator especializado nesse tipo de personagem, geralmente, é de compleição forte com um registro de voz médio-grave e bem projetado para expressar uma gama de sentimentos próprios aos bravos e corajosos. Com suas roupas extravagantes, os personagens Jing carregam a fama inquestionável de bravura.
O ponto alto desses personagens é rosto pintado à mão. As formas de pintar são variadas e trabalhosas, e expressam um vasto conjunto de temperamentos interligados, por exemplo, vermelho se refere à lealdade, bravura e senso de justiça; preto indica fidelidade, integridade e violência; azul refere-se à bravura, determinação e até crueldade; amarelo e branco simbolizam brutalidade e traição; o verde é a cor do maus, bem como dos fantasmas e demônios, e de outro espectro das emoções, também a do cavalheirismo. Violeta simboliza bravura e sabedoria; cinza é a cor dos velhacos; ouro e prata brilhante a dos deuses, budas e seres sobrenaturais, enquanto rosa é a cor da velhice e da dignidade.
Com toda essa paleta de cores — e aqui está o principal — a platéia é informada e envolvida nas ambições e intenções dos personagens Jing. Apesar de tudo, o simbolismo das cores não é fixo, pois podem ser acrescentadas misturas nos traços e padrões pintados no rosto, que denotam uma combinação muito mais ampla e intrincada de sentimentos. Por todas essas características, a categoria Jing de personagens é sem dúvida a mais suntuosa e exótica.
A quarta categoria é Chou ‘os palhaços’. Os personagens cômicos também costumam ter o rosto pintado, embora apenas no centro a volta dos olhos e nariz (como se o nariz de palhaço ocidental projetasse um círculo no centro da face). Em grande parte das tradições teatrais os palhaços são aqueles que dizem o que não deve ser dito sem sofrer a interdição da sociedade. São os seres estranhos, que por sua estranheza toda estão autorizados a rirem até mesmo do imperador.
Um personagem Chou é um ser marginalizado na sociedade que pelo riso se liberta e liberta aos outros. É na quebra das convenções sociais que ele retrata com ironia as contradições na natureza humana. Na Ópera de Pequim eles podem variar entre funcionários decaídos, transgressores, delinquentes, barqueiros, criados, guardas da prisão e mulheres briguentas. Eles costumam se expressar em linguagem coloquial, incluindo dialetos regionais, e ainda podem ser personagens com habilidades marciais embora com toque de humor.
Música
Desse quadro geral a música vem a sublinhar as emoções, os gestos e toda ação no palco. O canto com suas diferentes técnicas de estilização das paixões é mesclado às linhas melódicas instrumentais, as quais evocam uma variedade de sentimentos em duas formas de expressão musical chamadas de ‘Xipi’ e ‘Er Huang’. Uma é voltada àqueles estados de espírito mais agitados de alegria, raiva e felicidade; e outra evoca às perdas, tristeza, melancolias e momentos de profunda reflexão.
São estas duas modalidades melódicas que complementam a enorme variedade de sentimentos na ópera. Os músicos apoiam os atores (cantores) delineando as cenas, reforçando o caráter e ação dos personagens. Um bom músico, um bom ator são, por assim dizer, parceiros. Na ópera chinesa os músicos estão mais próximos dos atores do que em outras tradições, sentados na lateral do palco de onde se misturam à cena. E assim, eles compõem o retrato final na grande pintura viva em plena transformação. O teatro do povo é o teatro da alma. Ele reflete tudo que há de humano e desumano (e sobre humano) na cultura universal chinesa.
> originalmente publicado na Revista do Instituto Confúcio Unesp, vol. 38, nº3, Maio de 2020.
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