Ritos Sonoros no Budismo Chinês
Recentemente escrevi um artigo para Revista do Instituto Confúcio, UNESP (edição janeiro de 2020) sobre a música no budismo chinês.
// foto tirada no Templo Tzong Kwan, Bodhisatva Skanda, um dos protetores do dharma
Os Sons do Dharma
Revista Instituto Confúcio Unesp, vol.36 nº1 2020
Todos os dias, às 5 horas da manhã, no coração do bairro da Vila Mariana, vê-se um vulto percorrer as laterais de um edifício oriental. Vestindo um robe marrom com uma manta laranja sobre o ombro direito, ele sobe dois lances de uma escadaria espiralada e chega num amplo terraço, às portas de um grande salão, e lá desperta o dia com seis badaladas numa pesada placa de madeira, apontando-a em todas as direções.
Após repetir três vezes este ritual ele entra pelas portas do templo e dá início à cerimônia: batidas de sinos e tambores em pulso lento, solene, e um canto leve feminino suave projeta-se sobre as casas. É o início da cerimônia budista que abre todas as manhãs e desperta a vizinhança a volta do templo Tzong Kwan.
/ ★ ★ ★ /
Os ritos sonoros representam a parte intangível na história da humanidade. No budismo são chamados «Sons do Dharma». Eles servem para organizar e traduzir os múltiplos sentidos do pertencimento em comunidade em vista de um objetivo comum: a iluminação espiritual. Pertencer a uma comunidade budista, em busca de um caminho espiritual, significa aderir ao conjunto de práticas e rituais que a sustentam, sendo uma delas a música, ou mais especificamente, o canto devocional.
Nos usos dados à voz cantada encontra-se uma ciência ancestral dos sons, que envolve de um lado a vocalização de textos sagrados e, de outro, o uso de ambiências sonoras providas por instrumentos de percussão, tais como sinos, gongos e tambores. Via de regra, é dessa combinação entre voz e percussão que os ritos e cerimônias budistas cumprem a função de conectar as pessoas à prática espiritual.
Monges na antiguidade conheciam perfeitamente bem o poder de harmonização que a música vocal oferece à prática religiosa. Do ponto de vista dos ritos, eles sabiam que, assim como a música conduz os praticantes por sucessivos estados emocionais, ela também organiza o espaço de modo harmônico. Não é a toa que as tradições budistas fazem uso conjugado da música com caminhadas pelo salão, entoando mantras e orações — e que hoje ainda assistimos nos templos paulistanos de tradição chinesa, como Templo Tzong Kwan e Templo Zu Lai (Cotia).
Cada corpo se movimentando e cantando no salão é uma fonte de energia vocal — e do conjunto resulta uma enorme potência sonora. Combinada aos toques esparsos e percutidos dos sinos e tambores, o espaço musical ganha uma aura mágica extraordinária. E por isso mesmo de grande envolvimento psicológico.
Grande parte dos ritos e cerimônias budistas envolvem a espacialização sonora a partir dos instrumentos de percussão, às vezes, incluindo até mesmo sopros (flautas e oboés), como no caso das tradições tibetanas, repercutindo no espaço arquitetônico e criando um ambiente sonoro todo envolvente. Um exemplo muito famoso vem do “Templo da Sabedoria Alcançada” — em chinês Zhìhuà Sì 智化寺 — que fica em Beijing. Há décadas, pesquisadores europeus e norte-americanos vêm estudando a mística em torno da música feita neste templo ancestral.
Dessa ambiência construída surge uma imagem sonora rica e precisa na coordenação ativa das vozes, flutuando entre incensos, pelo que cada indivíduo se conecta com o todo. Ao menos essa concepção é bastante marcada nas caminhadas meditativas, no uso das vestimentas, no gestual mínimo produzido para obter o máximo de efeito ritualístico.
os sons e a música
Muito em virtude desse uso canalizado da música, por razões ligadas à doutrina budista, que, em geral, os textos distinguem a música mundana da espiritual, conferindo a esta última um status sonoro único. A música mundana entretém, é um tanto passiva; ao passo que a música espiritual cria uma realidade ativa e benéfica para a prática espiritual.
Da música espiritual diz-se “Sons do Dharma”. Trata-se de uma expressão que significa também o ‘coração da prática musical budista’ — de um lado o aspecto devocional expresso em melodias sinuosas como os incensos pairando no ar, de outro a rítmica precisa e coordenada das vocalizações de mantras e sutras, que no geral são ‘recitações’ que fazem uso particular da voz num misto de fala e canto.
Fruto de uma época em que o homem deveria buscar harmonia com o cosmos por meio da prática religiosa, a música budista também é vista como pertencendo à categoria das manifestações celestiais. No budismo Terra Pura de tradição chinesa, por exemplo, o paraíso budista é descrito como um lugar profundamente musical no qual o Dharma (a lei budista) assume a forma de melodias deslumbrantes.
“Naquela terra, existem milhares de variedades de música espontânea, que são todas, sem exceção, sons do Dharma. São claros e serenos, cheios de profundidade e ressonância, delicados e harmoniosos; eles são os sons mais excelentes em todos os mundos das dez direções.” (Sutra da Vida Infinita)
prática de imersão
Em termos da realidade vivenciada por nós seres humanos, a música é vista como um fenômeno mental. Sendo algo intangível, ela existe tão somente em nossa percepção interna, por assim dizer, em nosso campo sensorial. Por isso alguns mestres dizem que a nossa percepção atrelada aos sentidos (tato, visão, olfato, paladar e audição) produz a nossa realidade cada instante.
Isso porque no Budismo tudo inicia e termina na mente. Todas as coisas e fenômenos são impermanentes, e sua durabilidade é apenas aparente. E assim, elas dependem de causas e condições que em última instância são sempre transitórias. Logo, nossas impressões incompletas e fugazes são as únicas bases de nossa experiência perceptiva, e por extensão, ilusórias.
Mas isso não significa que tudo seja fruto de um grande fenômeno Matrix. O monge gaúcho Lama Padma Santem ilustra bem essa visão — para ele: “tudo o que é visto, é visto pela mente, e tudo o que é visto pela mente é, na verdade, a mente vendo a si própria, vendo as imagens e objetos por ela mesma geradas”.
Neste contexto, pelas lentes do budismo, a música é um fenômeno intangível e transitório — não existe por si só. Ela depende inteiramente de nossa percepção para existir. A maneira como a apreciamos e nos portamos diante dela vem de nossa projeção mental a respeito da realidade a volta.
Nem por isso a música deixa de ter grande efeito sobre o nosso organismo. Na verdade, ela é uma potência genuinamente humana de buscar por meio dos fenômenos um contato duradouro com a realidade, aproximar pessoas e beneficiar a coletividade de um senso de pertencimento forte e constante.
a mente musical
Havendo uma música mundana e outra espiritual, a nós inacessível, é justo ao meio conectando ambas que a música budista se localiza. Ele é a ponte entre duas realidades, também chamadas “duas verdades”: a realidade ‘convencional’ do homem comum, não-iluminado, e a realidade ‘última’ alcançada somente pelos Budas.
De certa maneira a música é um elemento de passagem de um estado de percepção a outro. E assim, somente aquele que ‘desperta da ignorância’ (sentido literal da palavra Buddha) é capaz de ouvir as melodias maravilhosas do Dharma e com elas se deslumbrar.
Seguindo a leitura das mitologias budistas fica claro que a nossa mente comum, presa às condições mundanas de existência, é incapaz de perceber, e até mesmo conceber, os sons do Dharma expresso nos sutras. Com isso, torna-se claro também que a música é uma interpretação, se bem que sofisticada, de nossos sentidos. Apreciá-la é uma habilidade conquistada pelo exercício subjetivo da escuta e prática do canto.
Vai daí também o sentido de pertencimento que ela suscita, pois, em último caso, é pelo exercício, recitando sutras e mantras, que o praticante poderá auxiliar o seu próprio processo de iluminação e nele encontrar o sentido de sua existência.
“Todos os seres, sejam do céu ou dos reinos humanos, homens ou mulheres, do presente ou do futuro, que cantarem o nome de um dos Budas, ganharão méritos imensuráveis. Eles obterão grandes benefícios durante a vida ou mesmo após a morte. Eles nunca serão lançados no estado maligno dos sofrimentos.” (Sutra de Ksitigarbha)
É neste exercício de busca por um sentido para a nossa existência que a música budista se torna uma ferramenta de prática, ao mesmo tempo em que traz aos praticantes a convicção íntima de que eles não são os primeiros a cantar, recitar, ouvirem tocar os sinos, tambores e gongos. Muitos outros antes deles desempenharam os mesmos ritos e se envolveram de maneiras semelhantes com as cerimônias.
A beleza dessa visão, que convida a contemplar toda uma linhagem ancestral, está no momento em que cada um se conecta musical e sonoramente, uns com os outros, e assim ficando um pouquinho mais perto — e quem sabe desperto — para a celebração de uma vida conjunta que pulsa, existe e canta a si própria buscando algo de melhor. Afinal, os Sons do Dharma, estão por aí, despertando, celebrando e encerrando todos dias.
Ao cair da tarde o véu arroxeado se estende do horizonte, e mais uma vez vemos aquele robe marrom com a manta laranja derramada sobre o ombro direito; ele sobe as escadas espiraladas para encerrar o dia, dessa vez, percutindo o sino invertido, justo ao altar, com uma pesada clava de madeira encapada com um couro estofado rígido, ele percute uma vez, e duas no tambor, e mais uma vez, e três no tambor, e tem início o canto leve e meditativo anunciando o véu anoitecido que cai no horizonte das casas da Vila Mariana.
Entra na noite com halo sonoro de recolhimento até o nascer do sol de todas as manhãs do mundo.
os instrumentos do templo
/ ★ ★ ★ /
Das três pesadas portas entramos pela da esquerda, e nos encontramos diante de um piso de madeira reluzente com almofadas e estantes pequenas de livros para apoiar os livros sagrados distribuídas pelo assoalho. Olhando para cima encontramos um grande tambor vermelho suspenso no teto, este também vermelho, feito de uma grande treliça de 480 quadrados, cada um com o símbolo da Roda do Dharma em alto relevo.
Agora, se entramos pela porta da direita, a mesma cena: no lugar do tambor um pesado sino de metal suspenso — o “Sino da Essência”, assim chamado por causa das inscrições em ferro fundido do “Sutra ou Discurso da Essência”, também chamado “Sutra do Coração”.
Ambos instrumentos musicais são tocados apenas duas vezes ao ano: durante a Cerimônia de Nascimento, Nirvana e Morte de Buda (o Vesak) e durante a Cerimônia dos Antepassados — 108 badaladas estremecem o salão nessas ocasiões.
A grande porta central (uma porta dupla) é reservada apenas aos monges e alguns discípulos treinados nas cerimônias. Quando abertas aos domingos temos uma vista ampla do salão com o altar ao fundo, tendo do lado direito um sino grande, depositado em cima de uma mesa alta, que dá a impressão de estar de cabeça para baixo (um sino invertido), e do lado esquerdo um instrumento de percussão esculpido em madeira na forma de um peixe gordo e arredondado, e que se assemelha muito a um tamborzão oco de madeira.
Quando tocado produz um som grave e calmante — serve para marcar o ritmo dos cânticos, ao passo que o sino invertido é tocado para delimitar as sessões dos textos e dizer quando começa e acaba a recitação.
Há ainda os pequenos instrumentos de percussão de mão: um sininho que um dos monges segura rente ao peito, e toca nos momentos de prostração diante do altar. Há também um modelo menor do peixe de madeira, e que serve para marcar os passos das caminhadas meditativas no salão. Todos esses instrumentos são ricos em simbologia e sua posição espacial no salão, não raro, corresponde aos antigos princípios do Feng Shui.
Porém, os instrumentos do Dharma não se restringem ao Salão do Buda. No refeitório, no subsolo, há um gongo consideravelmente grande, pendendo do teto justo a porta de entrada, e que muito se assemelha a um penduricalho no formato de âncora, que é tocado cinco minutos antes das refeições. Serve para convidar os praticantes a sentarem-se na mesa, como também observarem o silêncio para os agradecimentos aos cozinheiros do dia.
Para download do artigo completo acesse o link.
Comments