The 2nd London International Guqin Conference
Enfim chegou o dia de embarcar para Londres. Dia 20 de agosto de 2023 desço no aeroporto de Heathrow após onze horas de travessia sobre o atlântico. Um voo suave da British Airlines. Londres está repleta de turistas com as últimas semanas de férias sob um céu morno e noites frescas. Havia mais de vinte anos que não vinha aqui. Lembro-me das últimas vezes em que estive com o meu pai, sobretudo, para assistir aos shows no Roonie Scott's Jazz Club.
A cidade mudou muito. À época eu era apenas um estudante de música procurando o meu lugar no mundo. Hoje, sou eu quem trago meu filho na mão para reviver uma parte dessa memória, e também para desfrutar de uma viagem em família, só nós três, passados quase cinco anos desde de nossa viagem a Taiwan em 2018. Embora pequeno, ele já experimenta um pouco dessa visualidade do velho continente como quem ainda não se estabeleceu como estrangeiro na terra.
Encontrei muitos ingleses simpáticos e solícitos, principalmente os funcionários do metrô: senhores e senhoras de colete laranja neon aguardando o próximo a se perder no emaranhado férreo da capital.
Passada uma semana feroz, entre carros, pessoas, trens, deslocamentos pelo underground, overground e ônibus bamboleantes, carrego uma enorme caixa de madeira, trago até aqui esse meu guaratchim flamejante; e enfim estou às portas da Goldsmith University para me juntar a conferência de guqin promovida pela London Youlan Qin Society, uma sociedade fundada há vinte anos atrás por um casal simbólico: Charles Tsua 徐永裕 e Cheng Yu 程玉. Ambos conferem a essa sociedade londrina um ar específico de renovação e difusão do guqin moderno.
Conheci Charles na noite anterior, na sexta feira, em que todos foram convidados a se juntar para um jantar em Chinatown no “The Imperial China Restaurant," um nome bastante sugestivo. Foi ali que o conheci em pessoa. Ele gentilmente me serviu chá, enquanto repetidas vezes enchia sua xícara, constantemente vazia; suava em bicas enfiado em seu paletó cinza escuro coberto por uma beca acadêmica. A certa altura se levantou para ir ao banheiro, e quando retornou pôs-se muito ereto e disse “Where is my fan!?” Respondi que não sabia, no que repetiu num tom ainda mais esganiçado: “Where is my fan!?” prolongando a sílaba final. Logo, o achei guardado na sacola de tecido de outra pessoa.
Era um leque chinês amplo com todo jeito de antiguidade, o qual ele manejava como um patoá, abanando-se constantemente em todas as situações, naquela roupa em todas as temperaturas. Falamos amenidades, e logo ele me perguntou se havia toda aquela comida no Brasil. Para sua decepção, disse sim, que eu estava plenamente acostumado com aqueles pratos e iguarias chinesas, e que as comia regularmente no Brasil. Nossa conversa parou aí. Juni L. Yeung, da Toronto Guqin Society puxou conversa comigo sobre coisas do Brasil e falamos também sobre guqin, e algum absurdo que circulava por aí sobre as mesas em que tocamos atrapalharem o som autêntico do instrumento.
O jantar terminou com Azaleia, um dos membros da London Youlan, levantando-se para me dar um abraço, assim como Julian Joseph, secretário correspondente de forte sotaque de Eton e com quem mantenho uma correspondência frequente por e-mail; geralmente, por ocasião dos yajis da London e da New York Qin Society.
Sábado de manhã. A conferência foi montada numa das salas de aula do departamento de música da Goldsmith com bastante eficiência pontualidade britânica, regida por Charles, as your Convenor (organizador do evento). Charles parecia presidir um julgamento com sua beca irretocável destoando de todos os presentes, chegando a performar três vezes o célebre grito: “Order! Order! Order!” no momento em que os participantes elevaram o tom de voz para conversas laterais.
Encontro-me em um ambiente acolhedor. Resplandecem sorrisos e gentilezas que tanto marcaram a viagem; dentre eles, alguns nomes conhecidos que pude conhecer pessoalmente ali, como Frank Kouwenhoven, Tse Chun Yan, de Hong Kong, Luca Pisano, sinólogo da Università degli Studi di Genova, Juni L. Yeung da Toronto Guqin Society, Cheng Yu, (presidente da Youlan) e, claro, Peiyou Chang, minha professora e presidente da New York Qin Society. Foi a primeira vez a vejo em pessoa, após 11 anos de contato frequente por telas (no início Skype, depois, Hangout, Meets e Zoom).
O primeiro dia de conferência foi marcado por uma chuva torrencial e um frio cortante, enquanto transcorriam os três painéis de apresentações programados por Charles: cultural manifestations of music, arts, instruments, and lyrics, rhythmic and musicological considerations.
As palestras da manhã foram esquivas, entre más redações em inglês, miswordings a dar com pau e conclusões parciais ou sem graça; com a exceção de uma menina que ao invés de falar da inserção do guqin em performances de música eletrônica, conforme informava a brochura do evento, preferiu compartilhar algo mais boring! que resumia o seu trabalho diário no Hong Kong Museum of Art: “The Embodiment of Guqin and its Production Process”, uma espécie técnica de decalque milenar para tirar a impressão digital de artefatos históricos usando uma cola de milho e papel de arroz chamada “Rubing Technique.” Em suma: um transfer para decalcar em 3D um objeto qualquer. Sua apresentação se tratava de decalques de guqins milenares.
Foi muito interessante o lançamento da tradução inglesa feita por Luca Pisano do célebre livro Qin Shi ou a “Rapsódia do Qin” de Zhu Changwen (1041-1098). Conversamos um pouco no segundo dia, uma pessoa muito simpática. Compartilhei com ele que a minha família vinha de Cosenza , no sul da Itália, na Calábria. Animou-se com isso e nossa conversa simpática foi em frente. Falamos sobre as dificuldades de emplacar nosso interesse pelo guqin em ambientes acadêmicos, o total desinteresse dos pesquisadores ou artistas institucionais; ele falou mal da cultura italiana, eu da brasileira. Nos entendemos bem!
Pausa para o almoço, Peiyou, Andrea e Esmie fomos ao mercadinho mais próximo: Sainsbury, para comprar sanduíches prontos e iogurte para de estômagos leves não cair no sono durante a tarde. Não sabíamos bem o que conversar, dado que todas as nossas conversas, até então, vinham pré-estabelecidas pelo ambiente formal do zoom. Tomamos um lanche breve no pátio interno da Goldsmith, combinando um jantar para depois.
As palestras da tarde foram interessantes. Peiyou compartilhou sua pesquisa sobre reconstrução rítmica, e dessa vez pude entender a defesa de tese de Juni sobre a necessidade de se construir um guqin de nove cordas com base na equalização dos modos heptatônicos, permitindo assim, tocar qualquer música fora do eixo pentatônico sem ter de fazer scordaturas especiosas. A noite era de concerto, mas dispensamos o convite para jantar num restaurante de cozinha sichuan nos arredores do Covent Garden. Demos boas risadas, falamos amenidades, tentávamos nos relacionar fora do zoom. Andrea fez questão de pagar o jantar, visto ter sugerido aquele restaurante.
Domingo, segundo dia de conferência. Não tive muita vontade de levantar para estar às 10 da manhã na Goldsmith. Preferi ir calmamente, e aproveitar o passeio de metrô e overground até New Cross Gate, tomar um bom café da manhã no Costa Café, ver as notícias. O café não era lá essas coisas, mas deu pro gasto. Quando decidi entrar na universidade, dei de cara com a Peiyou, Andrea e Esmie saindo do prédio para novamente comprar sanduíches.
Eram onze e meia. O mesmo mercadinho, os mesmos sanduíches de 3,50 libras (+ iogurte e suco), a mesma mesa a céu aberto no pátio da universidade. Prolongamos nossa conversa sobre a conferência. Conheço Andrea há pouco tempo. Ele, Italiano de Turim, professor de artes numa das universidades de Londres, tem um senso de humor apurado, discreto, e uma perspicácia sutil quanto aos temas postos em questão durante os encontros da NYQS.
Retornamos logo para a apresentação de Stephen Dydo sobre composição musical ao guqin. E logo foi a minha vez. Fiz o programado. Li meu texto em slides, dentro dos vinte minutos disponíveis como havia calculado. Algumas perguntas difíceis foram levantadas. Respondi. No entanto, a falta de circulação dos tópicos que eu trazia entre os qin players impediram-me de dar respostas aprofundadas, como, por exemplo, os processos de alteridade e a questão do “outro”, que soaram alienígenas para maioria dos presentes.
À noite todos os presentes viajaram para os subúrbios de Southwark, no bairro de Nunhead, para o Templo Qing Liang, onde a conferência terminou com a celebração do 20º ano da London Youlan Qin Society com um guqin yaji com a participação de representantes internacionais proeminentes. Peiyou tocou a peça « 神人暢 » Shenren Chang e eu « Chūn Xiāo Yín 春骁吟 ». Foi muito bom assitir Li Fengyun interpretando Liáng Xiāo Yin « 良宵引 » Retrato de uma noite maravilhosa. No entanto, fiquei surpreso com sua postura bastante arqueada, uma corcova que me levou a pensar numa deformidade óssea, além do que ela caminhava de muletas e parecia ter as pernas inchadas; pouco falava, senão o essencial, e saiu de lá de cadeiras de rodas. Seu marido, o prof. Wang Jianxin, um excelente flautista xiao estava constantemente a seu lado, e atuava como seu porta-voz, dando materialidade àquela face muda que no máximo esboçava um sorriso tênue.
Acho que a experiência foi muito boa para compreender como essas sociedades de guqin se organizam e percebem seu trabalho. Foi igualmente útil para mim perceber como os amantes dessa arte, não raro, vivem imersos em certa condições herdadas das velhas diásporas, e que por isso tendem a sacralizar o guqin, criando certas torres de marfim. Mas isso, afinal de contas, acontece em qualquer comunidade musical. No caso das sociedades de guqin fora da China, pode ser que elas estejam mais expostas ao risco de estarem um passo atrás, às voltas com idealizações, em relação ao que essa cultura de fato representa nos tempos modernos.
Slides da minha apresentação em Londres.
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